Homéricas

Tanto na Ilíada quanto na Odisseia, percebe-se que um homem – falemos dos homens, visto que às mulheres pouco status era dado fora da beleza, ao menos entre as mortais – recebe valor por três atributos: sabedoria (no falar), habilidade (como anfitrião, artesão, no manejo de armas ou de uma lira) e força (para as lidas do cotidiano, para o combate em batalhas, para os jogos, nos remos de uma nau).

Ao ler os dois épicos, fiquei a me perguntar se alguma outra qualidade seria destacável nos homens que Homero faz desfilar diante do leitor. A beleza masculina, decerto, também é merecedora de elogio entre os gregos: o porte, a proporção, o volume, os cabelos. Mas, desacompanhada da sabedoria, habilidade ou força parece vazia, inócua.

_______________ // _______________

A descrição dos empenhos corpo a corpo nas batalhas que se sucedem na Ilíada é terrível e maravilhosa. Da perfuração de um crânio por uma lança com ponta brônzea ao tombamento de um guerreiro, há toda uma beleza que vai do vigor da vida à tragicidade do último suspiro frente à brutalidade subjugadora. Poucos são os homens que expiram levemente; em suas mortes, o vermelho tinge olhos e cérebros e tudo se vai explosiva e repentinamente. Claro, médicos pesquisadores podem explicar isto fisiologicamente, mas é Homero quem melhor nos diz como a passagem violenta se dá. Tudo é repentina escuridão.

_______________ // _______________

Peguei-me certo dia, ao ter a leitura da Ilíada interrompida por questão banal, pensando que “era um mal perder por alguns segundos a música do livro”. Não à toa os capítulos, assim como na Odisseia, são Cantos. Mesmo que as melodias originais cantadas pelos aedos tenham se perdido para sempre, a música estará sempre ali, como uma exigência dos versos homéricos.

Resta ainda o mistério: Helena, afinal, caiu seduzida por Alexandre (Páris)? Foi iludida pelos deuses? O rapto se deu com seu auxílio? Ao menos durante o cerco de Troia, ela parece permanecer ao lado de Páris a contragosto, desdenhando da força do raptor diante da imponência de Menelau (de quem fora levada). Mas, na Odisseia, já de volta ao palácio de Menelau, Helena imprime no leitor a sensação da melancolia, talvez desgostosa por ter sido a causa primeira da guerra. Ou, afinal, estaria ela insatisfeita com ambos os homens?

De um modo ou de outro, Helena parece fadada ao desamparo.

_______________ // _______________

Na Ilíada, Diomedes avulta (como guerreiro) tanto quanto Aquiles e Heitor. Quando Agamemnon já tem para si que a retirada é certa, desamparado por Zeus e acuado junto às naus dos argivos (gregos), é Diomedes o homem a ficar firme, de pé na praia, diante do cerco dos troianos. É verdade que Agamemnon, de volta à batalha, é tomado de furioso espírito e luta com bravura e impiedade, mas foi Diomedes o último bastião quando Aquiles, ensimesmado e ferido pela vaidade, recusou-se a pelear.

Diomedes: anote este nome ao ler a Ilíada.

_______________ // _______________

Interessante a extrema importância que gregos e troianos davam aos corpos dos mortos. Deveria haver uma cerimônia fúnebre, quando menos um túmulo que marcasse o sepultamento. Como se a alma no Hades (que, ao contrário de certo senso comum, pouca semelhança possui com o inferno cristão) não encontrasse sossego possível sem o correto descanso do corpo que em algum canto jaz. Por isto o extremo vilipêndio de Aquiles ao cadáver de Heitor, arrastado por cavalos até que se despedaçasse e desfigurasse. Por isto a dor maior de Príamo, rei de Troia e pai de Heitor, até que pudesse dar ao filho digna despedida, arriscando a vida ao caminhar entre os gregos para pedir pelo corpo do rebento amado.

_______________ // _______________

Por fim, encerro este post com um tributo aos galgos, pois que um deles habita minha casa (a graciosíssima e amada Violeta). Estão em pelo menos três passagens, se bem me lembro, e cito aqui sua primeira aparição na Ilíada, Canto VIII, versos 537-542 da tradução de Frederico Lourenço:

“Entre os dianteiros ia Heitor, exultante na sua força.

Tal como o galgo que, na perseguição com patas velozes,

ao javali ou ao leão toca por trás no flanco ou nas nádegas,

e está atento ao momento em que a presa se desvia –

assim Heitor pressionava os Aqueus de longos cabelos, matando quem ficava para trás. Eles fugiam, desbaratados.”

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s

%d blogueiros gostam disto: