Historiadores, talvez mais que helenistas, dedicam-se à questão da existência ou não de uma Troia, de seu cerco pelos gregos, sua capitulação e queda (ou queda e capitulação). Ruínas encontradas na península da Anatólia, na Turquia (no que hoje é a Turquia), tentam corroborar a tese de que sim, existiu algo como Troia.
Discute-se ainda se um Homero – melhor dizendo, Homero – respirou sobre a terra, e se efetivamente criou ou compilou com gênio os cerca de 27.000 versos que compõem a Ilíada e a Odisseia. Duas correntes se chocam nas academias: aquela que defende que um homem chamado Homero responde por ambas as obras, criando-as ou habilmente compilando-as (e eventualmente as recriando), ou se diversos homens, em sucessão, são seus autores – e sabe-se lá como chegaram aos textos que lemos hoje.
Tratando-se de poesias orais, cantadas em público (e de domínio público), é razoável crer que um talentosíssimo indivíduo tenha, em dado momento do século VIII a.C., reunido relatos versificados e apresentados publicamente há séculos, e a eles tenha dado unidade e pitadas de sua própria criação. Mas é inteiramente plausível crer que elas simplesmente foram reunidas em dois enormes épicos ao longo dos séculos, por muitos homens de valor, até que chegassem ao todo que hoje conhecemos e aceitamos como versão (quase) acabada.

Mas percebam que, de todo modo, mesmo na hipótese de uma criação de único autor, teria ela que ser por este também reproduzida por escrito, ou por ele recitada/cantada a quem pudesse registrá-la. A Ilíada e a Odisseia seriam, então, uma criação (ou impressionante recriação/compilação) de Homero, que, em seu tempo de vida, responderia ainda por seus registros gráficos. Em não o fazendo, alguém (ou muitos alguéns) tomou para si a missão de eternizá-las em Literatura.
Mas isto importa ao leitor tanto quanto saber se Troia existiu, se padeceu de um cerco militar por dez anos, e se Aquiles e Heitor são personagens históricos ou fictícios. A Ilíada e a Odisseia são, de qualquer modo, (bela e tragicamente) reais.
Sejam a Troia da Ilíada ou a viagem de retorno de Odisseu uma recriação romantizada de eventos reais, ou pura criação, de um modo ou de outro retratam uma Grécia arcaica e real. Seu pathos e seu ethos são encontrados ali; suas aspirações, benções e maldições estão nestes poemas tão profundamente registrados que, sim, a História daqueles tempos também pode ser contada a partir deles. Uma probabilíssima romantização dos fatos – chamem de ficção – não deixa de extrair força e verdade do mundo que a vê nascer. Troia, aqueus, troianos, Odisseu e Penélope são tão verdadeiros, em sua humanidade, quanto eu e você. Talvez, melancolicamente, mais.
Considero importante afirmar a verossimilhança e a realidade que estão explicitadas em Homero, já que nos dias que correm há certo hábito de se exigir a transcrição absolutamente fiel de atos concretos para que se dê a algo o selo de verdadeiro. Pura bobagem, como se a verdade estivesse circunscrita à reprodução fiel e exata de algum fato. Há muitos modos de se recriar um acontecimento, com fidelidade ao real, que não apenas encená-lo tal qual se deu. Não são estes os idiotas da objetividade de que Nelson Rodrigues tratava?
Nisto tudo, creio firmemente que Homero (ou quem quer que seja o Homero que conhecemos, ou mesmo se houve um Homero) nos diz como foram os homens que o antecederam, e ele o faz com um apuro e uma profundidade que escapam a historiadores e arqueólogos. Estes não podem nos dizer tanto da alma de um povo.
Homero, sim.
Portanto, se há uma verdade sobre aqueles gregos, ela está na Ilíada e na Odisseia.