Violência, esta antiquíssima senhora

Talvez seja impossível à sensibilidade contemporânea do habitante médio ou abastado do mundo ocidental entender o papel da violência em Homero. Digo Homero, mas levemos isto às tragédias gregas. Hoje, o cidadão urbano com certas condições econômicas e certa visão de seu papel social parece incapaz de aceitar que meios violentos possam ter sido (ou ser) empregados costumeiramente mesmo por indivíduos ilustrados, e não apenas em casos excepcionais. A violência em Homero é um instrumento tão válido e aceitável quanto qualquer outro na resolução de conflitos, um dado incontornável da existência. E não consideremos apenas a guerra, intrinsecamente violenta. No universo homérico, o homem violento pode sê-lo em seu cotidiano, dentro de seus afazeres comezinhos, sem que seu semelhante levante uma sobrancelha em reprovação. Castigar fisicamente, e matar cruelmente, são recursos amplamente admitidos na Grécia dos épicos de que trato aqui.

E não é preciso grande imaginação para especular, em Homero, que as mulheres são especialmente vulneráveis ao flagelo da violência. Nenhuma delas, sequer as esposas ou filhas de reis, poderia se considerar tão segura quanto um homem de sua estirpe e posição. Elas são parte do butim, oferenda, fonte do orgulho masculino, objeto a ser admirado e possuído. As deusas olímpicas escapam a isto? Não nos esqueçamos que os deuses mais temidos e poderosos são, todos eles, homens: Zeus, Poseidon e Hades. Mesmo Hera, esposa do Crônida (Zeus, filho de Cronos), deve se sujeitar ao humor do marido. Divindade, sim – mas feminina.

Às mortais desta Grécia cabem a intriga, a aliança com um homem de força, a aparência frágil sob a qual possam tecer suas tramas. Frequentemente são descritas, aos olhos masculinos, com desdém, e também frequentemente o atributo da beleza é o único atributo a ser reconhecido e premiado. Desprovidas de beleza, da proteção dos fortes ou da simpatia dos deuses, estão sujeitas a tudo de mais baixo.

Não que os homens possam escapar à vileza de outros homens. A escravidão era regra, a morte cruel um fato da vida, a ascensão social (quase sempre) uma quimera. Mas haveria, ao homem das baixas camadas, a possibilidade de ter suas qualidades reconhecidas e retribuídas, seja por suas profecias de valor, seja por sua atuação no campo de batalha, seja por seu talento de poeta. Nada disto era comumente esperado de uma mulher (porventura as profecias).

Há uma verdade que jamais mudou nos milênios da história humana: modo geral, são as mulheres quem mais têm a temer nas guerras. Na Ilíada, as troianas sabem o que lhes aguarda se sua cidade vier a cair, tanto quanto o sabiam as alemãs diante do avanço russo em 1945, ou as habitantes dos territórios que viriam a ser ocupados pelos sérvios na guerra civil iugoslava nos anos 1990. O trecho abaixo, no terço inicial da Ilíada, trata da porção que lhes caberia na queda de Troia:

“Por conseguinte, que ninguém se apresse a regressar para casa,

antes que ao lado da mulher de algum Troiano tenha dormido,

vingando assim os estrebuchamentos e lamentações de Helena.

Canto II, Penguin Companhia, tradução de Frederico Lourenço.

Eram os homens nada mais que reflexo de seus deuses. Estes são retratados como violentos, cruéis, implacáveis, vaidosíssimos, sujeitos a todo tipo de adulação ou chantagem, escravos eles mesmos dos desejos os mais mesquinhos. Não são um modelo que possa vir a apaziguar o ânimo violento dos mortais. Tal ânimo só seria contido pela ameaça direta, sua sugestão ou alguma promessa de recompensa. O Olimpo sangraria um mortal tão mais quanto qualquer rei pleno de cobiça, e muito mais facilmente.

É possível (digo: provável) que, avançando nos estudos que faço, eu me descubra em algum erro. Não sou um helenista, erudito ou dedicado acadêmico. Estes textos são resultado de uma aproximação, na qual engatinho em terreno maravilhoso e hostil, e sempre posso vir a me corrigir. Aliás, é provável que eu o faça.

O importante é que avancemos, sem medo. Há muito a se descobrir.

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