Ítaca, razão da Odisseia

Não haveria uma Odisseia sem Ítaca e os personagens que nela se movimentam, ansiosos ou não pelo retorno do herói. Não haveria tampouco uma Odisseia sem que seu herói ambicionasse a volta aos braços dos que lhe são queridos. Um Odisseu ziguezagueando a esmo, sem destino, acumulando peripécias e desventuras apenas por estar a zanzar navegando – este seria outro Odisseu. Os avanços, recuos e percalços do protagonista épico só se justificam e ganham sentido à luz de seu desejo de retornar à ilha que lhe é querida. O longuíssimo poema é a expressão da vontade (máxima) de retorno de um homem capaz de tudo para voltar ao lar, um lar do qual sequer quis sair para guerrear (Odisseu chega ao artifício da loucura fingida para não cumprir o duvidoso dever de ir a Tróia).

Na ilha de ítaca assomam os personagens de Telêmaco (seu filho) e Penélope (sua esposa); em segundo e próximo plano estão Eumeu, o cuidador de porcos que lhe é escravo fiel, e o enorme bando de pretendentes à mão daquela que aguarda fielmente Odisseu. Toda a Odisseia é, pois, ponto e contraponto entre as agruras da viagem do herói que busca rever sua ilha e as agruras que enfrentam aqueles que, em Ítaca, aguardam uma volta que julgam improvável. Os pouco mais de doze mil versos se equilibram entre a conturbada rota de Odisseu e a permanência em Ítaca daqueles que o amam e por ele são amados. Ítaca é a força motriz sólida e constante que move desejos os mais variados.

Telêmaco, que Odisseu deixara ainda bebê, é agora um jovem na idade da razão e da voz a ser ouvida com autoridade por seus próximos, mas que se apresenta inseguro de seu papel como chefe da casa, até que Odisseu a ele se revele. A chegada do pai infla o peito, estimula o ímpeto e revigora o ânimo do rapaz, que então ganha confiança para, paulatinamente, confrontar os pretendentes que dilapidam o patrimônio e desonram o palácio-lar de Odisseu. Faltava-lhe a figura paterna ao lado, viva e pulsante, para que tomasse para si o papel de um varão a ser ouvido – e temido.

Penélope se apresenta frágil diante de homens que pouco controla. Ardilosa como o marido, contudo imensamente mais vulnerável, busca ganhar tempo, ainda que nutrindo pouca esperança de não se ver obrigada a abandonar a casa pela mão de um dos muitos que a cercam e cobiçam. Seu titubeante filho (ainda) não oferece proteção suficiente, e apenas as convenções impedem que a brutalidade a arraste ao leito com outro que não Odisseu. Sabe Penélope que as artimanhas de que faz uso terão fim, e a firme fidelidade que ostenta dar-se-á por vencida. Trata-se, creio, da personagem mais trágica da Odisseia (mas não incapaz de virulência e impiedade, sobretudo com seus escravos – era o ethos de então).

Importa reafirmar que o desembarque em Ítaca não encerra de pronto a peregrinação de Odisseu. Em verdade, os últimos Cantos do épico grego dão-se todos com o herói já em casa, mas obrigado ao anonimato e à dissimulação (de acordo com a orientação e os planos de sua protetora Palas Atena). O senso comum de leitores que ainda não se aproximaram da Odisseia provavelmente imagina que aportar em Ítaca dê fim aos sofrimentos de Odisseu, mas ali ele encontra seu maior desafio (com a exceção da caverna em que foi encerrado por Polifemo). Ítaca é simultaneamente lar e armadilha, e talvez túmulo imediato do “arrasa-urbes” se a ela Odisseu chegasse abertamente. Nosso “muita-tenência” não pode, assim, deixar de lado seus truques – até que a planejada carnificina em que se envolverá esteja desenhada e exija ação.

Quanto aos pretendentes, estes são retratados em sua soberba e desprezo pelo lar de Odisseu, apoiados em seu número, aristocracia e juventude. A isto soma-se a convicção de que a ausência do herói, mais que prolongada, resta definitiva. Seu senso de perigo e sua cautela, nublados por tais elementos, mostram-se pouco confiáveis. Quando Odisseu vence a prova proposta por Telêmaco, manuseando com facilidade e perícia o pesado arco que a todos recusou bom manejo, vislumbram tardiamente seu fim.

E é sintomático que a Odisseia chegue a seu epílogo com a paz imposta por Palas Atena, ao conter Odisseu quando este avança sobre a turba que estava a lhe cobrar (com a vida) a morte dos levianos pretendentes. O brutal ímpeto, contido até o momento da revanche, está então à disposição completa de um Odisseu mais senhor de si que nunca. O ataque é interrompido por um furioso Zeus, que faz chegar ao herói seu profundo desagrado.

Os deuses, enfim, estavam já saciados em sua sede de sangue.

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