Moral precária

Odisseu é um personagem único na Odisseia, e pode-se perguntar se isto é apenas a natural escolha de Homero, espelhando um dos modelos heroicos possíveis de tempos passados, ou se relatos vários uma vez condensados pelo poeta formaram sua figura. De qualquer modo, Odisseu parece amalgamar as virtudes de um herói para aqueles tempos, dosando astúcia, perícia no manejo das armas, força incomum, coragem e justiça (a justiça que lhe era possível, talvez a única de seu conhecimento). Não há na Odisseia (ou não seria Odisseia) outro personagem que leve ao leitor tamanha concentração de desventuras e seu contraponto em resiliência, pertinácia e capacidade de escrutínio. Odisseu sintetiza em sua figura os muitos homens possíveis e admiráveis naquela Grécia.

Vejamos Aquiles, o supremo guerreiro. Este provavelmente não obteria o êxito de Odisseu no retorno a Ítaca. Dotado de bravura e um incomparável espírito indômito, não estaria propenso às diplomacias (e muitas mentiras) a que Odisseu se obrigou em seu sofrido caminho de volta. Algumas artimanhas e certos ardis de Odisseu pareceriam a Aquiles indignos de prática, demonstrações de uma submissão que lhe seriam intoleráveis. Imaginar uma Odisseia obrigatoriamente nos leva a imaginar Odisseu como se nos é apresentado: um personagem que se vê impelido a sufocar certos ímpetos e moderar ânimos em nome de um alvo distante, e diante do qual impulsos para o confronto devem ser sufocados. O homem certo para empreender a viagem que acompanhamos, sôfregos, na Odisseia não poderia ser Aquiles – nem Heitor.

Há mais. Odisseu, no único momento em que cede negligentemente a um impulso (que rapidamente se mostra equivocado), ao chegar à terra dos ciclopes, encontra-se mais perto da morte que nunca. Mesmo em seu palácio, confrontando os numerosos e soberbos pretendentes de Penélope, sua segurança jamais esteve tão ameaçada. É ali, na caverna de Polifemo e próximo de se ver comida para o gigante, que se apercebe do resultado de sua empáfia. A viagem para Ítaca, definitivamente, não poderia ser uma peregrinação feita aos arrancos e sopros de valentia.

E isto era uma exigência de seu mundo, em que etiquetas não escritas criavam laços de obrigação entre os cidadãos dos vários reinos da Grécia de então. Há na Odisseia exemplos em profusão deste código tácito, como a norma que impunha que visitas e anfitriões, antes de quaisquer deliberações ou solicitações, saciassem à farta seu apetite e sede. Visitantes, estranhos que fossem, e uma vez que se comportassem com adequação, também não deveriam deixar as terras que visitavam sem levar consigo variados dons (presentes), a eles livremente ofertados por aqueles que os recebiam. Ou o hábito recomendável de ilustrar grandes ocasiões com a presença de aedos (um rapsodo que recitava suas composições ao toque da lira), sendo o mais célebre destes não por acaso e não sem mérito o próprio Homero.

E, last but not least, Odisseu deseja profundamente voltar a Ítaca. Por isto, sabe que rompantes ou concessões à fúria serão obstáculos que mesmo Palas Atena, deusa-mãe que o adota como filho mortal querido, não poderá remover. Que contenha então no peito tudo aquilo que por vezes remói, se pretende sentir novamente o fogo no salão de sua casa.

Toda a moral – dentro da qual se movimentam Odisseu e os demais – na Odisseia parece estar condicionada à vontade humana parecer justa aos olhos dos deuses, e estes, vemos, agem de modo a ajustar aquela ao próprio ânimo. Seja um banho de sangue, um exílio ou um casamento arranjado, pouco importa. Conta, isto sim, um balanço no qual os mortais são ora jogados de lado por um deus envaidecido e orgulhoso, ora por outro ressentido e vingativo. Neste jogo, Odisseu parece equilibrar melhor que quaisquer outros suas necessidades e agruras. Bom é o que os deuses entre si decidem que é bom, e este é um conceito no mais das vezes pouco sólido. Saber navegar nessas águas turvas da moral divina é uma arte para poucos líderes.

O divino Odisseu, o “muita-tenência“, soube como poucos praticá-la.

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