“O largo Páramo de que os deuses dispõem.”
É notável, na Odisseia, a relação de dependência mútua entre os divinos moradores do Olimpo e os mortais. Mesmo Zeus, general de seus pares e última voz nos conflitos de que participa, precisa dos consolos, adulações e favores daqueles que habitam a terra que a tudo nutre. Nenhum dos deuses, arrogante que seja, parece poder dispensar os olhares dos mortais.
Isto acaba fazendo do ato de viver – em terra ou no Olimpo – um longo exercício de negociações, nas quais os deuses têm a última palavra – mas esta, por arbitrária e autoritária que seja, não dispensa elaborações e justificativas. A imortalidade, aqui, deve ser conjugada com a necessidade dos homens.
Na Odisseia, todo o longo percurso no retorno de Odisseu se dá sob a mediação de Palas Atena, que se compadece do herói e o orienta e protege. Contudo, orientação e proteção divina não permitem que Odisseu escape dos rapapés e mesuras dispensados a seus anfitriões, nem que tenha que escapulir por sua própria conta da caverna do ciclope Polifemo. Nestas situações, por favorito que seja da deusa, ele pode contar apenas com sua astúcia. Há limites para a atuação, mesmo entre os deuses.
Assim, há uma profusão de libações (o ato de derramar água, vinho, sangue ou outros líquidos com finalidade religiosa ou ritual, em honra a um deus ou divindade), holocaustos e hecatombes (sacrifícios de animais aos deuses, sem os quais no mais das vezes os mortais não contariam com os favores divinos) exigidos por um deus vaidoso, orgulhoso de si e de seus feitos. Todo este cerimonial precedia ou sucedia ações relevantes, favores pedidos ou concedidos sem qualquer abertura para o amor incondicional, para a generosidade descompromissada. Nesta Grécia, ou neste conjunto de reinados que um dia chamaríamos de Grécia, todas as coisas eram medidas a partir de tratos entre mortais e imortais. No que ressentimentos, rancores e invejas davam as cartas abertamente, às claras. O mesmo deus generoso em um momento ver-se-ia furioso no minuto seguinte, se não recebesse carícias humanas. Não era um mundo fácil e tranquilo, vê-se logo.

Zeus, olimpicamente, manifestava suas vontades quando provocado, atuando como juiz altivo e cheio de si nas querelas entre outros deuses, entre estes e os homens ou simplesmente entre estes últimos. Para isto havia todo um protocolo, o que não impedia que mortais e imortais vez ou outra resmungassem – ou se rebelassem – contra suas decisões. Claro que por vezes deuses mais próximos do filho de Crono (Zeus), como Poseidon (um de seus irmãos), agiam livremente. O treme-terra que habitava oceanos, instigado pelo filho Polifemo que clama vingança, não precisa da benção do Pai do Olimpo para movimentar águas e ventos contra Odisseu, limitado apenas pelo fado a se cumprir com o retorno do herói a Ítaca. Que antes disto, pois e ao menos, sofra nos mares.
Esqueçam a possibilidade – risível na Odisseia ou em qualquer outra obra clássica grega – de um deus que se sacrifique generosa e incondicionalmente pelos homens. Nunca, jamais. Os deuses olímpicos são muito ciosos de si, de seu poderio e de sua imagem diante dos pares para uma entrega do tipo. Se seus favoritos não lhe renderem os tributos que julgam adequados, que sofram reveses os piores. O mecanismo não funciona sem que os joelhos se dobrem não por amor, mas por temor. Há uma arma permanentemente apontada para a cabeça de cada grego daquele período.
A antropomorfia é, assim, a marca mais visível dos deuses gregos. Imortais, mas presas dos sentimentos mais caracteristicamente mortais, especialmente dos mais mesquinhos entre eles. Para que se deleitem onde estão, obrigam-se a aguardar com zelo o afago dos homens. Sua morada divina não prescinde da miséria humana, antes nela é robustecida. São deuses apequenados, frequentemente patéticos ainda que poderosíssimos. São menos deuses em sua vaidade, menos respeitáveis se observados sem a temerosa devoção dos gregos de então. Deuses que necessitam de carinhos na cabeça, como enormes lobos com presas sempre afiadas e prontas ao ataque se não são adequadamente tratados. Que os homens ajam por medo diante de suas mortais limitações, entende-se; mas como respeitar divindades que tão mal usam poder e força?
Olhando de longe, os imortais que do Olimpo regiam destinos humanos – ou de lá desciam para tal tarefa ou distração – não eram mais que agiotas dotados de enormes possibilidades de ação, com grandes porretes cósmicos à disposição de seus humores, e dos quais homens menos submissos riam secretamente. Deste modo concluo, serenamente, que só deviam ser levados a sério na medida de suas desmedidas.
De resto, nada havia de real valor no que ofereciam. Tristes deuses.