Um arco que só a Odisseu serve de arma – e um arco em que nada muda no herói

Eis rota, peripécias e agruras de Odisseu (Ulisses, na versão latina), em seu retorno ao torrão natal (Ítaca): subjuga os cícones e chega à farta lavoura dos varões lotófagos; depois de enredar a si e aos companheiros (alguns devorados vivos) na caverna do ciclope Polifemo (filho de Poseidon), cega o titã e escapa; alcança as terras de Eolo, que o recebe e dá condução, mas as águas sob o domínio do temível treme-terra Poseidon acabam por levá-lo, exausto, à lestrigônia Telépilos, na qual naus e homens encontram terrível fado, escapando apenas Odisseu.

Circe então o encaminha à morada de Hades, para consultar a alma de Tirésias; lá vê companheiros mortos e a mãe, e novamente singrando mares ouve o som incessante de sirenas, a este resistindo; nas pedras Plânctas enfrenta a ira das feras Caríbdis e Cila; enfim alcançando terra, vê seus homens abaterem vacas sagradas, punindo-os Zeus com a morte; Odisseu, embora livre da nefasta perdição, está novamente sozinho.

Alcança a ilha Ogígia, lar da ninfa Calipso, que o retém por sete anos planejando desposá-lo, mas Odisseu recusa isto em seu ânimo, até que uma ordem vinda do Páramo (onde habitam os deuses) impõe sua soltura.

Em Ítaca, sua odisseia não tem fim imediato: ali o muita-astúcia, sob a orientação e o poder de Palas Atena, é envelhecido e porta vestes de mendigo, para então se aproximar de seu palácio, de seu filho Telêmaco e de sua esposa Penélope. Odisseu não deve surgir aos olhos de todos com a identidade revelada, pois que são muitos os pretendentes vis de sua mulher, e estes lhe preparariam funesto fim. Ardiloso e paciente, suporta escárnio e vilanias até que, em momento planejado, cerra as portas de sua imensa casa e tem para si vingança que sabe a mel. O massacre apoteótico que se dá – enforcamentos, castração, degolas e eviscerações – sacia fome e sede de Odisseu, que então é reconhecido por Penélope, revela-se também ao pai que afastado mora e, comandado por Atena, aceita para si e para as famílias dos pretendentes que eliminara um pacto de paz que o levará à doce morte na velhice.

Tudo isto li por agora, encerrando a Odisseia na tradução diretamente do grego de Christian Werner, que ainda prefacia brilhantemente a preciosa edição da falecida Cosac Naify. Não há nada para assustar quem se pretende seu leitor. Qualquer um com bom vocabulário, dada uma introdução à obra e necessárias contextualizações, é capaz de se deixar levar pela fluidez rítmica do texto, em seus 24 cantos e pouco mais de doze mil versos.

É possível que o senso comum associe a peregrinação de Odisseu a um combate físico constante com outros homens, mas não é esta a verdade da longa poesia épica. Com a exceção do ajuste de contas já em terras itacenses, Odisseu se obriga a apenas um rápido e brutal confronto físico em seus anos de retorno, quando ataca e retira a visão do ciclope. Todo o resto da viagem é uma contínua negociação com os anfitriões, dos quais depende para seguir caminho. Estes darão a Odisseu e companheiros fartura de carne, pão e vinho, bem como leito, dons (presentes) e novas naus. Uma lei não escrita, que rompida pode provocar a ira dos deuses, obriga ao anfitrião o recebimento com honras de qualquer estranho que sua terra visite. Mas isto não elimina a necessidade de o visitante medir suas palavras, o que torna a saga homérica um fascinante jogo retórico que nos lembra a velha máxima: a dura ofensa só é possível (sem punição) aos homens que bem sabem que suas cabeças permanecerão sobre o pescoço.

E é curioso observar que Odisseu – quando nos dias que correm muito se fala na jornada do herói, destinado a cumprir um arco que o transforma – é o mesmo homem do início ao fim dos cantos. Nada em seu ânimo e ímpeto se modifica, suas ações são motivadas pelos mesmos impulsos e pela mesma fibra, estando obrigado apenas a adaptar-se às circunstâncias que homens e deuses lhe oferecem. O Odisseu que finalmente desembarca em Ítaca e se revela por completo àqueles que ama, uma vez exterminados os pretendentes de Penélope, não se distingue daquele que deixou Tróia dez anos antes. O arrasa-urbes que sitiou e deu combate aos troianos é exatamente o mesmo que consuma sua vendetta, e que apenas a fúria de Zeus impede que continue a descer os braços em seus conterrâneos. Sua felicidade depende de uma paz que se mostra justa aos olhos dos deuses, mas que antes encontra sustento no peso de seu bronze. Odisseu parece correto aos nossos juízos se direcionamos nossos corações àqueles que o vilipendiaram, mas ao mesmo tempo sua implacabilidade impressiona a sensibilidade moderna. Só há justiça, ali, por meio do sangue vertido.

Se Homero foi um ou muitos, se um gênio criador ou compilador, não saberemos jamais. Se Tróia um dia surgirá sob as ferramentas de escavadores, ou se se trata de uma construção necessária e condensadora para tantas outras cidades que sucumbiram, também isto creio que jamais será sabido. Tenha a Iliáda (também esta atribuída a Homero) e a Odisseia um autor, muitos e/ou nenhum, pouco ou nada importa. Resta, grandiosa, uma obra que nos fala de homens que, amiúde, estão a cercar cidades e massacrar adversários, despedaçando-se por nacos de algo que, ao fim e ao cabo, jamais terão.

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