Em 2006 era lançada a revista Piauí (circulando bem ainda hoje), que se pretendia uma publicação inteligente e sofisticada. Nisto acertou e errou ao longo destes anos, mas não estou aqui para discuti-la. O que me interessa é que, naquele ano – não me lembro se no primeiro número, mas certamente num dos primeiros -, ela convidou o escritor Ivan Lessa para um de seus (dela) textões de muitas páginas. A ideia era ótima: que ele desembarcasse em sua cidade, o Rio de Janeiro, depois de 28 anos de ausência em Londres, e falasse de seu retorno. O que saiu foi uma obra-prima da contenção de emoções, um material brilhante em que, dizendo sem dizer, fala de seu amor presente e perdido pela Guanabara (entendam Zona Sul, entendam Leme x Leblon). Procurem no site da revista, é fácil de achar e está aberto para não-assinantes.
Mas o que me leva ao texto do Ivan, que releio de tempos em tempos, é a passagem da qual foi extraído seu título (“Eu conheço esse cara“); logo depois de instalado em um hotel presunçoso da orla, ao cruzar em uma rua de Ipanema com um senhor de sua faixa etária (por volta dos setenta e poucos), ele imagina que pode conhecê-lo, que podem ter se cruzado nos tempos míticos (para ele) do bairro, que talvez tenham partilhado uma miríade de coisas inacessíveis à compreensão de gerações outras, em especial as mais novas. Assim é arrematado este trecho: “Qualquer pessoa com seus quarenta anos, não tem nada a ver comigo, nada terá a ver comigo, nestes dez rápidos dias. Quem tinha doze anos, ou por aí, quando peguei a Avenida Brasil e segui para o Galeão, é de uma nacionalidade outra, beira o alienígena. Meu negócio são cabelos brancos“.
Entre muitas outras passagens (inclusive uma que vez ou outra uso no que escrevo), esta me marcou mais profundamente. Estamos falando de dezessete anos atrás, e eu tinha então (quase que) exatamente os quarenta anos apontados por Lessa. De pronto, entendi o que era dito, e o que (uma vez ajustado) eu poderia dizer a outros.
Abro parêntese para a experiência pessoal que definiu, para mim, este estado cronológico e de espírito. Mas que só assumi com clareza ao ler o texto supracitado, anos depois.

Acima: desenho de Jaguar, ao lado de Ivan Lessa 28 anos depois.
Era o ano de 2000, e eu entrava na segunda temporada (como em uma série, dessas bem ruins) como professor de uma escola que ia do fundamental (primeira série) ao pré-vestibular. Botem aí assim: alunos dos 7 aos 17 anos. Eu tinha 33.
Lembro que em um final de semana convidei alguns alunos do último ano, sujeitos de seus 17 e 18, para umas cervejas. Coisa banal, escutar um som e bebericar, no estilo “cara um pouco mais velho que vai aplicar a garotada naquilo que presta“. Ingênuo ainda, eu.
Com meia hora, percebi que não havia nada a ser dito, nada que remotamente pudesse nos unir. Fora o fato altamente decepcionante de todos os três ou quatro não gostarem e mal conhecerem qualquer coisa que eu tenha colocado no aparelho de som, ainda restou a constatação de que, para todo o resto, aqueles 16 ou 17 anos de diferença eram intransponíveis. Mesmo que partilhassem de minhas ideias e gostos, haveria em algum momento a barreira das referências, e referências, uma vez que necessitem de contextualizações e detalhamentos, perdem muito da força. A reunião durou pouco, frustrante para ambos os lados. A primeira e última tentativa do tipo.
Faltou o “Eu conheço esse cara“.
Parêntese de fechamento.

Acima: Ivan Lessa, precavido, cuida da hidratação.
Sei do óbvio: sujeitos da mesma espiral geracional podem estar afastados nas influências de sua formação – mas alguma coisa há de uni-los. E também sei que uma conversa entre pessoas que distam entre si vinte ou trinta anos pode ser mais prazerosa que aquela entre pessoas de idades próximas. Contudo, ainda que inteligência e interesses afins falem alto, há de se pinçar as sugestões, modular as citações, moderar as lembranças. Afinal, “eu não conheço esse cara“.
Este texto, vejo agora, meio que acabou ficando com aquela cara de desconfiança, chatola, atirando ceticismos contra o diálogo intergeracional. Não é o que desejo. Que todos conversem, na medida do possível. Mas quando vejo um sujeito de cabelos brancos do outro lado da rua, sorry, é quase inevitável que eu pense:
“Eu conheço esse cara“.