O cemitério branco

Outro curto conto meu, novamente com clara inspiração em Borges (aqui, “The Lottery in Babylon“).

Era um cemitério claro, muito branco, sem muros, lápides, tumbas ou mausoléus. As árvores eram milhares e as mais variadas, e longas alamedas percorriam seus muitos quilômetros quadrados. Como não havia muros, também não havia portão ou grade de qualquer tipo, e ainda distinguia-se por não possuir zeladores, coveiros ou faxineiros. A razão disto é única e fantástica: buscava-se no cemitério a longevidade, não o repouso da morte.

Explico-me agora ao leitor assombrado, que me crê louco ou mentiroso.

Este lugar imenso (sem procedência, autoria ou governo visíveis), perfeitamente simétrico, distinguia-se por oferecer aos que o acolhiam algo inalcançável àqueles que permaneciam fora de seus limites (e aqui é necessário dizer que estes eram observáveis por meio de uma longa passarela circular, feita de uma única e contínua pedra negra): uma vida que poderia se estender por séculos ou milênios, durante a qual permaneceriam com a aparência que possuíam quando nele entraram.

Sua singularidade, ouso afirmar, carrega em si um traço de deuses dos quais não desejo – mais: não posso – tratar. Que quem me lê saiba que este manuscrito é um pedido de socorro e perdão.

Afirmei que caminhávamos para o cemitério em busca de vidas incrivelmente longas e estáveis, e não mais que uma misteriosa exigência era feita aos que lá entravam (peço-te agora, antes que prossigas, uma oração por minha alma): a cada século, como resultado de secreto e ininteligível sorteio, todo habitante se obrigava a cumprir o que tal jogo impusesse.

Trato agora de seus mecanismos, naquilo que posso e sei.

Quatro pontos equidistantes da passarela que delimitava o lugar guardavam uma pequena e marmórea mesa hexagonal, suspensa a um metro do chão por um único pé também marmóreo, e em cada um dos pontos, centenas de vezes ao dia, mãos tranquilas, trêmulas, firmes e vacilantes (mas sem nunca deixar de fazê-lo) buscavam em seu secular dia de tributo a ordem gravada em pequeno disco de argila, a sorte duplamente aleatória pela vontade de quem a lançava e pela hora do dia em que era retirada. Imaginava-se uma justiça piedosa construída pelo acaso – mas tal esperança é logo abandonada por todos que aqui entram. Restam-lhes, feita a terrível constatação, muitíssimos anos de angústia crescente.

As ordens do sorteio dispunham gozo ou sacrifício; um homem poderia ir à mesa um dia antes do termo de um século, e de imediato no dia seguinte ao início de outro, cumprindo a regra inviolável (ninguém nunca deixou de atendê-la). Se uma mulher mutilasse o próprio corpo, um homem sodomizasse seu filho, outro deitasse nu sobre a grama, um terceiro cantasse canções de guerra ou amor ou beijasse a boca do irmão, quem apontaria a justiça desses atos? O conteúdo da loteria, por sua misteriosa natureza, ordena o silêncio. Sobre seu descumprimento, afirmo-o impossível. As regras do cemitério são intocáveis (e, até onde sei, imutáveis).

Sobre o destino dos habitantes do enorme cemitério quando de sua morte, nada posso afirmar. Eu mesmo um deles há vinte e dois séculos, jamais ouvi algo ou especulei seriamente a respeito. Cumpri todas as ordens, e deixo com a mão que me resta este manuscrito e um inventário de minhas misérias. Que possam servir (são meu clamor secreto, e meu desespero) aos que aqui desejam entrar.

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