Abaixo, curto conto que escrevi muitos anos atrás.
Eu descia a ladeira em corrida com a caixa na mão e não estranhava a corrida na ladeira e a caixa na mão para dá-la ao menino em farrapos que me despertara a consciência da pobreza; estar descendo uma ladeira em corrida com uma caixa nas mãos não me era mais estranho que a consciência da própria pobreza. Identificar no menino em farrapos a pobreza aterrorizava-me: como era possível? Uma falha genética que subitamente despertara ou uma concessão momentânea do Sistema Fechado? O menino em farrapos não seria ele mesmo uma concessão? E se de fato despertara em mim tal consciência por concessão – o que posso esperar? Uma sucessão de consciências programadas? Por quê? O menino que eu perseguia na ladeira era parte da programação? O que haveria na caixa? Posso abri-la? Ao alcançá-lo, devo entregar-lhe a caixa? Possuir a consciência da caixa como resultado de uma deliberação alheia torna-me mais consciente?
Paro.
Cesso a corrida e o menino sai de meu campo de visão. Não há mais a vontade empurrando pela ladeira meu corpo com uma caixa na mão. Posso falar em vontade? Minha consciência agora diz que cessei a corrida por minha vontade e possuo uma caixa fechada, um menino que não mais vejo deve recebê-la e parece-me absurdo por ilógico que eu queira conscientemente entregá-la a ele e que por essa razão tenha corrido. Tento abrir a caixa. Não, não tento mais abrir a caixa. Se a consciência programada me impele a abri-la, não fazê-lo representa a Consciência Verdadeira.
A Consciência Verdadeira era nosso mito.
Tê-la como mito era parte fundamental da programação geral do Sistema Fechado.
A Vontade Espontânea era o subproduto mais temido da Consciência Verdadeira.
Ter uma caixa em mãos para dá-la a um menino em farrapos e possuir a capacidade de associá-lo à pobreza era a confirmação de que o subproduto improvável havia surgido.
Corte para a Sala de Ajuste Comportamental.
O alvo da Consciência Verdadeira corta a rua e estanca numa esquina. Seus pálidos onze anos de existência não lhe explicam aquilo. Então era possível a autoconsciência da pobreza? A consciência a partir da consciência de Outro? E como era possível que Outro possuísse tal consciência? Já ouvira falar em Consciências Permitidas; seria o caso, então? E por que a sua consciência despertara como resultado da consciência alheia? Não estava tudo certo, o fluxo não era ininterrupto?
De repente, a caixa.
Se algo até ali era explicável, a caixa não o era. A caixa surgira pela primeira vez em um Corte de Consciência, um estado alterado próximo do antigo sono. Sabia ele que imagens, cores e sons desse estado eram derramados sobre todos aleatoriamente. Como um objeto de seu Corte de Consciência – entre milhões de outros em onze anos – pôde surgir em outro estado, e nas mãos de um estranho que corria em sua direção (para entregá-lo?)?
A mesma caixa retangular, vermelha; o mesmo vermelho brilhante; os mesmos desenhos oblíquos em sua superfície e o mesmo cordão prateado a envolvê-la. E o mistério maior, aquele que realmente o apavorava: a memória desse objeto.
O corpo no chão não seria um problema. O acionamento do Dispositivo de Recolhimento de Indesejáveis era seguro, eficiente, eficaz e rápido. Rápido o bastante para que nada fosse percebido. O Eliminado Indesejável era apenas um auxiliar de baixo escalão, facilmente substituível e suficientemente insignificante para que a sua ausência não fosse notada. Além do mais, ele possuía a senha que reordenava os dados e apagava de qualquer sistema os vestígios de quaisquer funcionários – desde que, claro, não fossem eles de sua linha hierárquica ou superior a ela.
A Experiência de Reformatação estabelecia as conexões corretas: o choque se dava em um único momento, fugaz o bastante para que a ordem das coisas não se alterasse. O restabelecimento da Autoconsciência permitia o alívio necessário para que o Sistema Fechado não sufocasse suas próprias vias de comunicação. Era simples, rotineiro: um único indivíduo, escolhido ao acaso, recebia uma descarga de Autoconsciência e imediatamente assumia o controle, por minutos, de sua existência, e nesse parco tempo seria então capaz de captar a essência do real, ainda que sob o monitoramento da Sala de Ajuste Comportamental. O excesso de Consciência Controlada era direcionado velozmente para o vácuo produzido pelo espaço de tempo entre a Consciência Monitorada e a Autoconsciência, reequilibrando todo o Sistema Fechado.
A caixa vermelha. O menino. A consciência da pobreza. A corrida.