Um nostálgico furioso

Sou um nostálgico: eis a verdade inapelável, sólida como o Pão de Açúcar ou o Corcovado.

Minha mulher apontava-me o dedo e dizia, entre a brincadeira e a acusação amorosa: “És um nostálgico“, e eu tremia em calças e camisas como se réu fosse. “Nostálgico… mas por que isso?!“, e buscava duas ou três negações firmes para refutar o que me parecia uma insensatez.

Mas, encharcado por essa verdade irreparável, batia os queixos de um frio polar: “Sim, um nostálgico irremediável, um granito de nostalgia. A nostalgia está em mim como as formigas em um doce, lambuzando-se.”

Admitida a culpa, ou a responsabilidade grave, restou-me investigar como um detetive de pulp fiction as razões de minhas nostalgias. Se sou um nostálgico, de que sinto estas saudades cruéis e simpáticas? Se Proust assalta-me com madeleines imaginárias, de onde saltam as estocadas que recebo de meu passado? Meu passado, sim, pois que não sou um nostálgico de tempos alheios, mesmo que possa admirá-los a uma distância segura. Para ser um nostálgico sem falseamentos, um homem de saudades graves, devo tê-las e senti-las com(o) aquilo que me é próprio, intransferível, singular. Não há nostalgias por empréstimo.

Dos bairros em que morei na infância e na adolescência? Das escolas? Das praias ou das viagens, para mim descompromissadas, leves, prazerosas desde o primeiro quilômetro? Das idas ao cinema no velho centro da cidade, e do sanduíche que devorava com ardor religioso ao final das sessões? Dos passeios de bicicleta que nunca mais darei, pois as bicicletas e o garoto sobre elas nunca mais haverão de ser? Das férias de dezembro, janeiro e fevereiro?

Tudo isto é massagem em meu coração, tudo isto é delícia. Mas não seria justo se dissesse que são estas minhas nostalgias. Estas, ainda que irrecuperáveis, são compreensivelmente uma perda. Mas há uma perda compreensível e inconsolável, certa e desastrosa, da qual nunca nos afastamos, que carregamos conosco como um tuberculoso carregava consigo as feridas no pulmão. Falo da perda daqueles que amamos. Se é uma certeza, trata-se de certeza injusta; se é inevitável, trata-se de uma inevitabilidade contra a qual nos revoltamos por algo que talvez esteja em nossa natureza, como um defeito cujo enfrentamento recusamos. Conformamo-nos, mas não aceitamos. Se aceitamos, fazemo-lo a contragosto, secretamente furiosos, injustos com Deus.

Penso: somos a obsessão furiosa contra o Criador, que com a paciência de um Pai magnânimo aguarda o sossego de nossos corações. Como feras abrutalhadas, prendemo-nos aos que amamos; com as garras em transe, esfrangalhamos nossos entes queridos, torturando-os. Deixemo-los ir, para que fiquem. Abracemo-los, sem confiná-los em nossos egoísmos mais justificáveis.

São estas minhas nostalgias. Não dos almoços em família, mas das bocas que mastigavam a comida, das faces em que estas bocas estavam, dos crânios em que estas faces repousavam, dos troncos sobre os quais os pescoços sustentavam os crânios, destas pirâmides de carne, ossos e sangue que lhes permitiam sorrir para mim, só para mim.

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