Transformo – passo, ultrapasso, abandono – o “tudo aquilo que não pode ficar para trás” em um, todo meu, “tudo aquilo que deve ser deixado para trás”.
O que seria esse tudo?
Assim que nos apegamos a certas coisas, há toda uma confusão. Apegar-se a algo e amá-lo – quanta distância pode haver entre uma coisa e outra? Pode ser uma lembrança que está presa em nossa pele, e pela qual guardamos certo afeto não muito bem analisado. Pode ter sido amor em dado momento, sem que percebamos que envelheceu mal.
Pode ser ainda a distorção de um passado, quando o tratamos de tal modo que lhe conferimos o status de uma beleza que jamais existiu. Agarramo-nos a nossas compulsões de tal modo que moldamos nossos desejos a partir de bases apodrecidas, más em sua natureza.
Assim toquei minha vida ao longo de tantos anos, deixando que as compulsões ditassem meu ritmo, meu consumo, meus apetites. A batida frase “antes dez anos a mil que mil anos a dez” não é mais que estupidez hedonista, acabando por medir a vida por sensações fúteis, passageiras, vazias, sem consistência.
Como diria Carlos Marx: “Massa sem substância“.
Mas alguém lucra com isso, claro. Alguém sempre lucra com os desvarios alheios. Nunca houve, nas sociedades contemporâneas, desvario sem lucro. Ainda que ao preço de uma alma.
Todo este lero-lero para dizer que, há poucos minutos, com passagens, hospedagem e ingresso na mão (comprado cinco meses atrás) para um show, desisti da viagem em sua véspera. Buscando saber mais a respeito do que hoje desejo, resolvi nos últimos dias investigar a fundo minhas reais motivações, se não estava apenas sendo fiel a alguém que não mais existe.
Deixar a família por dois dias, obrigações de lado – verdadeiramente, em nome do quê? O admirador da antes ainda é um admirador genuinamente interessado? Eu me vejo, lá, empolgado como estaria dez, vinte, trinta anos atrás?
Ao mexer nessas questões, e tentando ser o mais honesto possível, consegui a resposta que desejava. Resolvi ficar onde estou. Com a rotina que tenho hoje.
Abençoada rotina.