Quase toda frase precisa de um contexto, ou pode ser lançada do alto contra os incautos como uma bigorna que não faz justiça a seu autor. E, nesta maldita guerra cultural, ou guerra de narrativas (profundamente estúpidas), temos então um artifício muito usado por todos os lados: uma citação que cai como uma marreta na cabeça do adversário.
Mesmo uma frase solta, com sua vida restrita à solidão terrível, apartada e desamparada de todo o resto, é parte de uma estrutura muito maior na obra de um escritor. Há de se ler o que veio antes, o que a acompanha naquele momento e o que foi escrito depois. Observaremos algo que a contradiga parcialmente, sua negação completa, seu complemento, sua correção – sua confirmação? Tudo pode mudar, se encadeada a frase em um edifício textual muito mais amplo. Se, solitária, parece líquida e certa, acompanhada pode se revestir de outros sentidos.
Mas, no Brasil de agora, nada disso importa. Importa sacar da frase como uma arma, dispará-la e depois se refestelar no gozo de sua fumaça. Cito John Lennon (aqui vai uma frase solta, quem sabe válida neste contexto, contudo distinta do contexto da canção): “Happiness Is a Warm Gun“.
Nelson Rodrigues, claro, não escaparia disso, quanto mais seja ele um de nossos maiores frasistas. Como explicou mais de uma vez, foi chamado (entre tantas outras coisas) de tarado por sacarem frases ou diálogos do conjunto de suas peças. Assim, soltos, adquirem um sentido e uma aplicação completamente diversos daquilo que o dramaturgo buscava. Manipular citações pode ser ser uma arte malévola, ou simplesmente burrice (no cenário brasileiro, é regra a segunda alternativa).
Escrevo esta longa introdução para alertar os leitores que a seleta de citações a seguir pode sofrer o mesmo prejuízo. De qualquer modo, corro o risco em nome do brilhantismo e da força das imagens que Nelson propôs. Todas elas retiradas das primeiras 80 páginas de “Memórias – A Menina sem Estrela“, que leio agora.
Algumas, pungentes ao extremo; outras, curiosíssimas, engraçadíssimas, espirituosíssimas – todas carregando a marca de um gênio universal.
Avante.

“Ela (a mãe de Nelson) tem pena de mim, sempre teve. Fosse eu um Walter Moreira Salles e minha mãe teria pena de me ver, boiando num lago de milhões como uma vitória-régia.”
“Trato minha úlcera a pires de leite como se ela fosse uma gata de luxo.”
“Qualquer praia vagabunda, mesmo a de Ramos, tem para mim um apelo mortal. Às vezes, penso que já morri afogado em vidas passadas ou morrerei afogado em vidas futuras. Gosto até do cheiro de peixe podre.”
“Na hora de morrer, e quando sabe que está morrendo, o homem tem um olhar súplice e insuportável de criança batida. Não, não, um olhar de contínuo. Eu sempre imagino que o arquiduque austríaco, com os intestinos de fora, morreu como o último dos contínuos.”
“Morreu aos 44 anos de idade e jamais me deu um vago e merecido cascudo. Na hora, porém, do revide polêmico, era um Zola a descompor o Exército francês (sobre seu pai).”
“Claro que o sujeito, seja ele um homem de bem ou um pulha, é um assassino falhado. Não há ninguém, vivo ou morto, que não tenha concebido a sua fantasia homicida.”
“Seja como for, o pecado é anterior à memória.”
“Toda infância é varrida de tias. Umas mais velhas, outras mais moças. Muitas vezes, eu chegava em casa e caía sobre mim aquela saraivada de tias.”
“Para mim, não há nudez intranscendente. (…) um vago decote pode comprometer ao infinito.”
“Pra morrer, Marilyn despiu-se como na folhinha. E morreu nua. Morreu folhinha. (…) Mas o biquíni é a folhinha de graça, a folhinha não gratificada, a folhinha sem cachê (sobre a nudez de Marilyn Monroe na Playboy).”
“Em 1917, 18, 19, os enterros saíam mesmo de casa. Não era como agora. Agora, despacha-se o cadáver pelos fundos. É uma espécie de rapto vergonhoso, como se a morte fosse obscena.”
“(…) eu estava lá, pequenino e cabeçudo como um anão de Velázquez.”
“Hoje, graças à capelinha, a dor tem uma disciplina, uma polidez, uma cerimônia, prodigiosa. Não há mais ataques. Só na Zona Norte mais profunda, acima da Tijuca, talvez sejam ainda possíveis os velórios esganiçados, convulsivos.”
“Assim foi um suicida que me revelou a morte e eu quase dizia: foi um suicida que me ensinou a morrer.”
“Eu bem me lembro do justo momento em que tive a notícia, pelo rádio, na voz de Heron Domingues. Getúlio morreu. De repente, senti que Deus prefere os suicidas. “
“Quando meu irmão Mário Filho morreu, escrevi que a morte é anterior a si mesma. Ela começa muito antes, é toda uma luminosa e paciente elaboração.”
“Houve um instante em que me deu um ódio negro e cego contra o bar da capela, instalado no andar de cima. É um balcão que serve tudo, coca-cola, guaraná, grapete, sanduíche e cafezinho. A dor tem, ao fundo, um alarido de xícaras e de pires. Enquanto os cinco caixões não chegam, penso que há entre mim e Paulinho não sei quantas coisas entrelaçadas. Naquele momento, descobri que não se deve adiar uma palavra, um sorriso, um olhar, uma carícia (sobre a morte de seu irmão).”
“O Hélio Pellegrino esteve com o Otto (Lara Resende), certa vez, no Bateau. E foi uma testemunha visual e auditiva do seu prestígio na casa. Quando o Otto chega as paredes se abrem, as cadeiras disputam a sua preferência, os guaranás, as coca-colas e os sanduíches o atropelam.”