O leitor

R tinha com a leitura, desde pequeno, uma relação de amor que, por vezes, beirava a obsessão. Acostumou-se, ainda criança, a levar para a mesa suas revistas, e parecia-lhe impossível ou pouco prazeroso comer sem algo que pudesse, simultaneamente, ler. A comida lhe sabia insossa e sem graça, não estivessem ali algumas páginas a temperá-la. As admoestações de seus pais pouco efeito produziam: colocava o que estivesse lendo sobre os joelhos e, em furtivas olhadelas, prosseguia na leitura. Ou, tornando-se vagaroso ao extremo, com garfadas pontuadas por intervalos cada vez mais longos, acabava por ficar sozinho à mesa, quando podia então dar vazão àquilo de que mais gostava.

Ao crescer, viu-se acompanhado de um inseparável par de óculos, pois desenvolvera muito de hipermetropia, um cadinho de miopia e um restolho de astigmatismo. Já não lhe era possível, na adolescência, ler mais que as legendas no cinema, e depois nem estas. Pouco se lhe importava, e os óculos adquiriram o status de uma segunda natureza física no rosto magro. Tirava-os somente para o banho, ou na prática de um esporte que não os exigia. De resto, permanecia um leitor voraz, de temperamento introvertido, pouco dado a saídas de casa.

Ainda assim, viu-se aos 23 anos apaixonado por uma colega de infância do bairro em que crescera, e em pouco deu-se o casório. O início idílico prometia a paz de que R necessitava, dedicando-se a trabalhar, namorar e, sempre que possível, abrir um livro e a ele dispensar generoso tempo.

Mas, não muito depois do casamento, os problemas começaram. Sua esposa, irritada com as horas gastas pelo marido com a leitura, passou a perturbá-lo de tal modo que os livros só podiam ser acessados de madrugada, ou no trajeto casa-trabalho. Uma vez que estivesse sentado tranquilamente lendo algo, sua mulher tratava de lhe arrumar alguma outra ocupação. R, paciente e cordato, pousava o que tinha em mãos e atendia com solicitude a esposa que amava. Já imaginava uma velhice na qual, ao contrário do que sempre desejara, não disporia de todo o tempo do mundo para ler. Resignava-se, e buscava aproveitar ao máximo as oportunidades que surgiam.

R trabalhava na sede de um banco estatal, e lá suas responsabilidades não eram de forma alguma pequenas, ainda que lhe exigissem pouco do intelecto. Cabia-lhe velar pela estrutura que podemos chamar de cofre, mas do tamanho de uma imensa casa. Todos os ativos físicos do banco que lhe davam lastro para as negociações, assim como diversos pertences históricos de posse e propriedade do Estado, lá estavam. R devia cuidar escrupulosamente de sua disposição, encarregar-se do processo de verificação de milhares de barras de ouro e das condições de armazenamento de jóias, obras de arte e mobiliários clássicos, cujos imensos valores eram vagamente estimados em dinheiro. Para isto, dispunha de uma equipe de dez pessoas sob seu comando, e estas a ele respondiam diretamente em toda e qualquer circunstância. Também o sistema de segurança e alarme, com campainhas, sensores e câmeras, estava sob sua guarda. R, zeloso e disciplinado, incumbia-se com rigor das tarefas, mas com profundo tédio. Eventualmente, quando nada de especial lhe era exigido e superiores ou subalternos não se encontravam por perto, sacava de um livro e punha-se a ler com avidez, sabedor de que em casa dificilmente poderia fazê-lo.

Em um dia qualquer, tão pachorrento quanto qualquer outro, trancado sozinho no imenso cofre que podia abrir por dentro com um código único e privado, observou no relógio de pulso o fim do expediente. Dirigiu-se à saída e percebeu, com certo espanto, que a pesadíssima porta de aço se encontrava entreaberta – o que era profundamente curioso, já que ele a deixava obrigatoriamente fechada e nenhum outro funcionário, com a exceção de seu chefe direto, poderia abri-la. Observou o ambiente e constatou que, aparentemente, ninguém ali estivera.

Saiu calmamente de onde estava, empurrou o enorme dispositivo que selava o cofre, trancando-o, e caminhou até o elevador (todo este espaço ficava em um subterrâneo, alguns andares abaixo do térreo do vetusto prédio). O elevador parecia não funcionar, e R dirigiu-se para a escada metálica, que subiu vagarosamente. No salão principal, nenhum funcionário, nenhum movimento, tudo em seus lugares, nenhum papel fora de sua mesa, e apenas as luzes acesas indicavam que por aquele lugar pessoas transitavam poucas horas atrás.

Na rua, carros abandonados, as portas abertas; contudo, nenhum sinal de desastre ou ataque. De um modo geral, estavam as coisas em suas disposições corretas, como se os habitantes da cidade tivessem todos eles, simultaneamente, saído de lá em direção às estradas que levam para fora do município. Um televisor ligado sobre o balcão de um bar mostrava cenas pelo país, e um desesperado locutor anunciava que, com a exceção de pouquíssimas pessoas que estavam em determinados lugares em dado momento, todos haviam desaparecido misteriosamente.

Preocupado (obrigo-me a dizer que nem tanto), R foi para casa, imaginando se encontraria a esposa que deixara para trás no começo da manhã. Lá, nenhum bilhete, nenhum sinal de luta, nenhum rastro ou pista do que acontecera. Sua mulher, como dezenas de milhões de outros cidadãos país afora, simplesmente sumira.

Entrando em sua biblioteca e verificando que esta se encontrava com a estimada organização de sempre, R retirou de uma das estantes um livro cuja leitura há tempos adiava e, acomodando-se na poltrona de que mais gostava, atirou-se à primeira página da obra.

E, se outro homem ali entrasse naquele instante, poderia testemunhar um leve sorriso no rosto daquele leitor.

P. S: este conto foi desenvolvido a partir de um episódio da primeira temporada do seriado Além da Imaginação, cujo enredo modifiquei pontualmente (e cujo final modifiquei em um ponto crucial).

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