A peça, em três atos, é violentíssima: casal inter-racial – Ismael (preto), Virgínia (branca) – enterra seu terceiro filho, o terceiro a morrer ainda muito pequeno. Ambos, por caminhos distintos, enojam-se da cor preta da pele, e vivem há oito anos uma relação em que ela – mantida reclusa pelo marido em uma casa que se aproxima de um bunker, em local não identificado pelo autor – sonha com outras vozes e rostos, especialmente de outro homem (qualquer homem que não seu marido). Ismael recusa concessões, mesmo um quadro de Jesus Cristo pedido por ela – mesmo Ele o ofende, por sua cor e seus traços, e nenhum branco haverá mais de olhar sua mulher.
Sim, sim, quem me lê talvez esteja a imaginar que outras estranhezas e loucuras pontuam a peça, e logo entrego: além do racismo explícito de vários dos personagens, somos apresentados ao infanticídio, à sugestão de incesto, ao adultério, ao assassinato, ao estupro continuado, ao suicídio. Mas, em Nelson Rodrigues, nada se nos é colocado diante dos olhos por puro prazer ou gosto pelo choque. Ali, nenhuma ação se desenrola sem um arcabouço de justificada perversão ou demência, seja pelo ciúme para muito além do controle, seja pela obsessão com questões que não podem ser modificadas, seja por desejos recalcados que não encontram saída para a luz por nenhuma via.
Anjo Negro, a obra de que falo, tomou para si minha admiração inconteste como obra-prima irretocável, absoluta, até agora aquela que mais me impressionou por sua estrutura, condução e vivacidade. Ao meu espírito, tem para si os ares de criação mais esplêndida, confirmando Nelson Rodrigues como um gênio universal, rival de peso e ombro a ombro com os grandes da dramaturgia mundo afora.
O texto é um primor de ritmo e força; as falas, furiosas e desesperadas; as discussões levam à vertigem; a ambientação é sufocante; e as indicações do autor servem com perfeição ao propósito de acentuar as brutalidades próprias de cada cena. Tudo se passa em uma casa, o mausoléu erguido por Ismael para abrigar, proteger e isolar o objeto de sua obsessão. Um mausoléu do qual, certo dia, o Sol se afastará permanentemente, como a marca de uma maldição.
Das primeiras peças teatrais de Nelson, estreou em 1948 no Rio de Janeiro, vencida uma espera de dois anos imposta pela censura. Transportem-se para a década em questão e imaginem, ainda que levemente, seu impacto – mesmo sabendo que a tragédia rodrigueana, já sem apiedar-se do público, estreara em palcos cariocas em 1941.
A vingança move a história que nos é contada: a tia de Virgínia vinga-se da sobrinha, culpando-a pelo suicídio de uma das filhas; Ismael vinga-se do mundo, estuprando Virgínia; esta busca vingança matando seus filhos (todos pretos) com Ismael; este mais uma vez se vinga, cegando a filha branca de Virgínia com outro homem. Ninguém retrocede, ninguém interrompe o ciclo.

Se A Mulher sem Pecado, Vestido de Noiva e Álbum de Família propunham a imersão na violência de um inconsciente que se projeta e vem à superfície desacorrentado e perturbador, Anjo Negro o faz adicionando ao emaranhado psicológico o ódio racial. À época, recusou-se um ator negro como protagonista da trama e impôs-se a solução do infame black face (um ator branco enegrecido pela graxa), para a quase apoplexia de um contrariado Nelson. Apesar deste ultraje, a explicitude do texto não permite tergiversações a respeito do racismo brasileiro. Era o que era, é o que é.
O que torna patente que boa parte dos conservadores brasileiros faz uso equivocado de Nelson, em seus intermináveis debates com a Esquerda (e esta também tem lá seu Nelson sequestrado para fins políticos). Balançam frases e máximas do autor como se estas retratassem um pensamento e ideias em bloco, mas sua obra é imensamente maior que essas querelas, essas bobagens de ocasião, essas conveniências.
Prefiro ver Nelson Rodrigues com muitos e diversos interesses, pouco preso a ideologias, disposto a trazer à tona fantasmas e esqueletos, e fazendo do Brasil um maravilhoso, terrível e irreproduzível melting pot.
Porque funciona assim: o talento faz o que pode – e o gênio faz o que quer.