Do que era nada para nunca mais – enfim

O passado nunca passa, dizem.

Estou de acordo.

Mas digo que, ainda que nunca passe, deve ser deixado para trás. Basta que enterremos, com decência, os novos cadáveres que o tempo que se foi insiste em depositar no jardim de nossas casas – uns, com a natural tristeza por sua partida; outros, com a necessária tristeza pela triste vida que abraçaram, tão imensamente triste que sequer precisam morrer para que sejam sepultados.

Há dois dias, um destes mortos que caminham assombrou-me com a força e a fúria da morte. De início, eu já o sabia parte de um tempo morto. Contudo, o tempo morre quando dizemos a ele: morra! E é preciso dizê-lo com a firmeza que a exclamação exige, quiçá todos os dias.

Ao me relatarem a ação do insepulto – como ele o havia havia feito, com quem o havia feito, as circunstâncias que cercavam o que havia feito, o terrível resultado de sua ação -, lembrei-me instantaneamente das muitas vezes que rimos juntos, dividimos um quarto, saímos soltos ruas afora, prometemos as centenas de noites que haveríamos de cumprir. Éramos próximos, talvez amigos, nada restou.

Repentinamente, saído sabe-se lá de que cova, muitíssimos anos depois, ressurge não com o sorriso que lhe era marca, um certo modo espontâneo de apresentar, sem resquício de qualquer vergonha, sua cafajestagem camarada. Ressurge com brutalidade, em uma notícia que só não me espanta de todo pois, hoje, já não olho para aquela época como se um romance de aventuras fosse, mas como o thriller de horror e suspense que de fato foi, cuja horrível trama então jamais enxergaríamos.

No que éramos jovens e estúpidos, fomos terrivelmente jovens e estúpidos. Uns mais, outros menos. No que vandalizamos as próprias vidas, fomos vândalos cruéis. No que agimos com inconsequência, fomos absurdamente inconsequentes, abandonando displicentemente os corpos na estrada ventosa. Aquilo não podia durar (mas durou bem mais do que devia); no entanto, seus males estão por aí, cadáveres que recusam a cova.

Se cá dentro havia um resto de saudade ao olhar tudo aquilo, na noite de segunda passada, à primeira frase – brutal, inesquecível, verdadeira, que aqui recuso-me a registrar -, despedi-me de tal resto. O velho conhecido é agora o monstro que, então, de algum modo estava escondido mesmo nos menores gestos, naqueles aparentemente ingênuos gestos que nós, negligentemente, recusamo-nos a identificar. A pele, finalmente, de todo trocada; a necessidade de ferir o próximo, agora, cumprida malévola e plenamente; a mão que machuca e mata.

Enfim, chegamos ao epílogo. O último cadáver recebeu as boas pás de terra que lhe eram devidas.

E, se ele não descansa em paz, ao menos eu o faço.

Adeus, nova velha cidade que amei estupidamente. Adeus a todo aquele velho arsenal de mentiras curiosas e juramentos jamais cumpridos. Adeus a tudo aquilo que fomos.

Não foi bom enquanto durou, e não é fácil dizer isto.

Mas é preciso.

Ass: Caio.

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