O mundo que morre conosco

De um lado, escatologias as mais diversas, juízos finais, apocalipses; de outro, meu enfado…

Pois que antes há um mundo que se encerra com nossa morte. Morremos, e um mundo abraça o fim: foi-se, já era, adeus. Aconteça o que acontecer, nele não mais seremos.

E há diversos mundos nossos morrendo um cadinho por dia, e é natural que só nos apercebamos disto depois de algumas décadas de vida. Este nosso mundo, aquele que conhecemos com alguma consciência de seu (dele) movimento, condições, circunstâncias e atores, paulatinamente deixa este palco, cedendo lugar a outro.

Grande parte das vezes isto se dá, de início, pela despedida daqueles que nos são mais próximos. Minha mãe, por exemplo, morta em 2003. Antes dela, alguns outros queridos parentes próximos meus se foram, e todo um mundo perceptivelmente foi transformado, e de imediato observei que algo houve de perder-se para sempre, e sofri pela primeira vez. No entanto, sempre damos de barato que parentes consideravelmente mais velhos haverão de morrer não muito depois de nossa entrada consciente na vida. “Seu avô morreu” é frase, mesmo ouvida quando ainda pouco crescidos, que não nos espanta por mais que alguns dias. “Era o vovô, puxa vida… eu gostava pra caramba dele, mas era o vovô, pai do papai (ou da mamãe), e ele já estava aqui bem antes do papai (ou da mamãe) nascer… nossa, quanto tempo tem isso… vai ver estava mesmo na hora de descansar, lá bem pertinho do Papai do Céu…

Mas, quando da morte de minha mãe, deu-se a primeira violentíssima pancada; afinal, não era tão grande assim nossa distância cronológica neste mundo, e tinha ela apenas 58 anos, e parecíamos ter mais duas ou três décadas pela frente. Ao morrer, carregou um mundo consigo. Não só aquele singularmente dela, mas um que partilhava com todos os que a rodeavam. Porque a vida é um espalhamento de vida por pessoas e coisas, e conformamos nosso mundo também pelo tanto que alguém com o qual o partilhamos lança sobre ele. Aquele mundo, com ela, e com o modo pelo qual ela nele interferia, nunca mais.

Só que, mesmo com sua partida, há muito por aqui com suas marcas, então seu mundo (e o meu a partir dela) não morre assim, todinho, de uma vez. O tempo, este sim, a ele caberá fazer de sua passagem por minha vida algo menos observável, consideravelmente esmaecido.

Este é um mundo tão somente nosso, pois, do qual nos despedimos – e mais e mais e mais, à medida que outros familiares nos dão adeus. Contudo, há outros nossos mundos que igualmente se despedem.

Se as partidas daqueles que amamos arrancam pedaços consideráveis do mundo sobre o qual construímos nossas vidas, o mesmo se dá com a soma das mudanças em todo o resto. A morte de um nome público, por nos ligarmos a ele afetuosamente. Pode ser também uma casa, a mudança no calçamento de uma rua, uma velha escola, um programa de televisão, uma expressão popular ou uma gíria particularíssima, uma revista, aquele cinema empoeirado, o sanduíche que sempre pedíamos, o balcão de um bar – e com ele o bar -, determinada cor da fachada de um edifício. São todas elas mortes que nos assassinam pequenos mundos, até que um dia levantamos os olhos e nada mais está lá, fora os portadores destes olhos e alguns poucos outros que se solidarizam com nossa nostalgia (e a entendem, e a possuem por igual).

E nossas memórias menos e menos provocam algum interesse, porque delas menos e menos pessoas podem extrair alguma coisa, e por vezes até nós nos esquecemos, e esquecemo-nos.

Vida que segue, é verdade. Mas não se não chorarmos nossos mortos.

Uma resposta para “O mundo que morre conosco”

  1. Preciosa reflexão, Sizue! De fato, perdemos um bocado de nossos mundos sempre que morre alguém que amamos. Perdi meu Pai quando ele tinha a idade que tenho hoje: 57 anos. Na época, eu era um jovem de 23 anos e foi muito doloroso. Na realidade, continua sendo difícil após 34 anos sem poder contar com a sua presença física ao meu lado. Nunca estamos preparados para a partida de quem amamos, principalmente quando deles viemos! Tenho o privilégio de estar chegando à chamada terceira idade ou velhice, ao lado da minha Mãe com 92 anos. Por mais que isso condicione, e muito, a minha vida, é altamente gratificante desfrutar da companhia de quem nos pariu, nos cuidou e nos educou desde que fomos gerado! Não será fácil perdê-la, mas hei de chorar e enfrentar com sabedoria a necessária separação.
    Gratidão por tão significativa partilha! AbraLaços

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