Enfim, Santo

Agostinho, para o provável espanto de muitos, demorou um bocado para chegar àquele estado d´alma que nos permitiria usar Santo antes de seu primeiro nome. Ao ler Confissões, livro que autor e contemporâneos possivelmente não julgavam longevo, e talvez sequer robustamente apologético, percebemos o que deveria ser óbvio há tempos, mas que o senso comum jamais guardou para si: a santidade é uma construção (creio que quase sempre). Lembremos a vida dissoluta do Bispo de Hipona até a maturidade, mirando a área da fé sem o passo decisivo. Foi sua mãe, mulher piedosíssima, que carregou consigo por décadas a crença sem abalos de que o filho juntar-se-ia a ela em um profundo abraço a Cristo. Rogou, insistiu, nem tanto ao filho mas muito a Deus, para que os pecados daquele fossem perdoados, sua sofreguidão pelo mundo e concupiscência intelectual tivessem fim, e que pudesse ela partir com o filho plenamente converso. Agostinho, vacilante e aferrado à erudição vaidosa, negava o salto decisivo. Flertava e tomava para si heresias, negava-se a ceder, afastava a submissão doce e voluntária a um Pai que dera a ele a liberdade de amá-lo, ou não.

O clichê nos diz que esta obra – uma das dezenas que nos legou – inaugura a autobiografia, esta como relato da formação de uma personalidade. Está bem, não divirjo, está lá; porém, quando o li, o que me veio continuamente à cabeça foi a evidência de que os santos são feitos de nosso mesmo barro, tão frágeis ou tão fortes quanto qualquer um de nós, e que o convite está sobre a mesa, aberto a todos. Padeiros, médicos, arquitetos, professores, operários, acadêmicos, analfabetos, agricultores, empresários – não há roteiro, manual ou fórmula, nem exigências ou condicionantes quanto à classe, formação ou conhecimento teológico/doutrinal. Talvez um louco, um homicida, um pagão, que sei eu…

Como julgamos a santidade? Há cerca de 25 mil santos assim reconhecidos pela Igreja, mas quais são os muitos milhões ao longo da história do homem, anônimos que agradaram a Deus sem fama, memórias e reconhecimento? Quem sabe aquele homem que viste uma vez apenas, em um relance, e que te impressionou por algo indefinido, não fosse ele um santo sem cerimônias oficiais, documentos, publicidade, solitário na morte, largado sobre trapos, o nome já esquecido.  

Podemos identificar a verdade? Quantos podem fazê-lo?

(…) aprendi, pois, de ti, que nada deve parecer verdadeiro porque dito com eloquência; nem falso porque os sinais proferidos pelos lábios soam desordenados; inversamente, uma fala não é verdadeira porque pronunciada de maneira grosseira; nem falsa porque é brilhante. Há sabedoria e estultice em ambos os casos, assim como há alimentos úteis e inúteis, e as palavras elegantes ou rudes são como vasos refinados ou rústicos, em que ambos os tipos de alimentos podem ser servidos (Confissões, Penguin Companhia, Clássicos, p. 127).”

A mãe de Agostinho, em rogo perpétuo, parece pedir a Deus que não desista de Seu filho. Em verdade, sua esperança expressa a crença de que um dia haverá o encontro entre aquela alma e a fonte de todas as almas, um Pai que ali está desde sempre, eterno, imutável, misericordioso, onipotente; e, ainda assim, incapaz de conquistar um coração que não se abre. Deus, que possui todo o tempo do mundo porque está fora deste mesmo tempo, e a ele não se sujeita, está permanentemente preparado para o encontro conosco, desejando-o, e boa parte de Confissões é o relato mais pessoal possível de todas as peripécias vividas por Agostinho, até que um dia esteja no lugar certo, no ponto exato do espírito – quando finalmente dirá, olhos aos céus: estou aqui, sou teu.

Não é leitura fácil. Eu o li, deixei de lado, voltei e claudiquei, tanto quanto seu narrador ao se agitar para lá e para cá. Mas, como o tempo nos ensina, agitação não é movimento, e tantas vezes mais vale se acalmar que se debater, e é preciso parar e escutar, esperar sem pressa. Calmo, pude terminá-lo.

Agostinho se debateu por muito tempo, e quando confortável descobriu-se no assento errado – cômodo, contudo enganoso. Ao desarmar-se, conheceu a força. Estava, afinal, livre. Livre de si mesmo, e Agostinho como nunca.

E, só então, Santo Agostinho.

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Imagem do Twitter

Você está comentando utilizando sua conta Twitter. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s

%d blogueiros gostam disto: