Victor Hugo, para quem já o leu – e bastam algumas páginas, não é preciso um livro, muito menos algum de seus calhamaços -, impressiona pela força singular que imprime ao texto, um tipo de força que arrasta o leitor a um vórtice de ideias as quais, ainda que delas venha a discordar, deve(ria) enfrentar com honestidade intelectual e boa disposição de espírito. Ali encontramos princípios, pontos de vista e impressões (as mais vivas) dispostos de jeito a exigir, ao menos, a mais mísera reflexão, invariavelmente expostos sem piruetas, exigindo olhos nos olhos e a coragem de enfrentar as convicções que arrastamos mundo afora. Victor Hugo nos chama à luta (ao menos à comoção), no mais das vezes a uma luta que deveria se dar cá dentro mesmo, e da qual não deveríamos fugir. Algo como se a humanidade que conduzimos a todos os lugares precisasse encarar a si mesma, perscrutar-se, investigar-se – e, talvez, reafirmar-se. Ao lê-lo, é inescapável este confronto.
Digo isto porque uma coisa capturou minha atenção nos últimos dias. Ao visitar certo perfil de rede social, observei um influenciador da Nova Direita brasileira aconselhar um seu seguidor a acautelar-se diante do escritor (o objeto em questão era Os Miseráveis), que notoriamente trazia consigo inclinações revolucionárias, subversivas, simpáticas ao movimento de 1789, claramente – para usar palavrinha da moda – disruptivas frente ao modelo social que o influencer defendia. De imediato, espantei-me: mas que diabos é isso, do que ele fala? Ao ler o romance, percebi acima de tudo (muito acima) a indignação exigida (de qualquer um) quando nos é lançada às faces a montanha fétida de iniquidades a que eram e são submetidos aqueles que pouco ou quase nada possuem (alguns, não mais que a teimosia necessária para insistir na vida). Os Miseráveis é, em primeiro lugar, uma obra de gênio, mesmerizante em sua imensidão, e sem vergonha alguma de assumir posição – quer seja a de acusar, apontar, dizer sem rodeios e fru-frus que os ímpios, ímpios são, que o desumano, desumano é, e que aquilo que nos parece injustiça, fede à injustiça e se move como injustiça, injustiça é. Assim, a pergunta: é esta a Direita que se pretende guardiã de valores bons e eternos? Como, de que valores fala, se simultaneamente se mostra capaz de sustentar um regime iníquo de leis e atos (desde que do outro lado transitem os portadores de algumas de suas antipatias e ojerizas)? Cristo, que raça de conservadores é esta?!

O que vai acima tem se mostrado norma nos últimos anos: posicionar-se a favor do que é injusto, tentando justificá-lo ou maquiá-lo, por conta de uma maldita e mal delineada guerra cultural. Maldita e estúpida. Estúpida e, falemos logo, contraproducente, quiçá infernal – porque não mais faz que lançar essa turma em um nicho mais e mais apertado, incômodo, constrangedor, feio mesmo, talvez muito longe do que pensam haveria de agradar a Deus. Não conseguem, os arautos de tudo aquilo que é bom e deve ser preservado, constatar que esta proposta de conservação traz consigo também um pacote de maldades que, se conscientes, denotam mefistofelia; se não, confirmam ignorância. De um modo ou outro, parecem incapazes de enxergar o erro.
E posso falar abertamente a respeito: eu era não mais que um deles pouco tempo atrás, outro cego embarcado nessa viagem suicida, inclemente, soberba. Lessem Victor Hugo com atenção e coração aberto, quem sabe não se examinariam com a humildade exigida dos que honestamente querem ver no próximo um irmão.
Porque ele está a nos dizer, todo o tempo, que é preciso ver no que sofre, naquele que nos vem aos olhos como indesejável, um irmão. E que aqueles que lançam obstáculos a isto são nossos adversários, e é indigno figurar em suas fileiras, e devíamos combatê-los. Mas, um momento, e lá Victor Hugo foi modelo de conduta ilibada na vida privada? Ora, que sei eu, quem realmente o sabe, e o que importa? Isto vai com ele e Deus. Mas o que escreveu deu voz àqueles que eram calados, e isto basta, e aqui finco minhas bandeiras.