Arquitetura da destruição

É impossível a quem tem olhos, sensatez e um resquício que seja de apuro estético não constatar a imensa feiura urbana em que, via de regra, acostumamo-nos a viver. E nenhum pedaço escapa, digo até mesmo que os torrões mais endinheirados respondem por grande parte da cafonice arquitetônica/urbanística de nossas cidades. É possível reparar que as aplicações de projetos respondem a uma mesma ideia incapaz de distinguir excessos (dos quais se originam miscelâneas as mais terríveis) ou asininos blocos mortos do que é equilíbrio, senso de unidade e sofisticação sutil. Quando uma proposta surge, a impressão que tenho é que os arquitetos das grandes construtoras estavam ali, reunidos em um mesmo lugar, e todos respondem por sua paternidade – no que resolvem dar vida a ela, simultaneamente, o que espalha com a rapidez de um vírus o horror por todos os cantos.

A isto somemos a sanha burguesa de abraçar qualquer coisa que a apascente, o nenhum controle paisagístico urbano por parte das prefeituras, a possibilidade legal que é dada a toda concepção arquitetônica de ver a luz do sol, desde que obediente a certas normas de segurança, a histórica despreocupação com o legado a gerações futuras, o conluio entre o capital privado imobiliário e o poder público… Temos assim o pior dos mundos, resultado da burrice generalizada de quem assim o aceita e da ganância desmedida de quem o propõe e estabelece.

Curioso que este é o cidadão que, visitante em cidades europeias, não raro aplaude a harmonia que lá encontra em prédios, casas e bairros inteiros, enquanto deprecia nossos brasileirismos. Chegado ao Brasil, reúne em sua varanda gourmet os amigos para lamentar o estado de coisas que por aqui temos, certamente culpa do despreparo do governo e da histórica má formação de nosso povo.

Mas ora, quem pode romper com isto? Que senhor prefeito e que senhores vereadores dispor-se-ão a, ao menos, impedir que o horror se alastre, continue crescendo? Enquanto comem na mão de empresários, charutos de 25, 30 andares são erguidos em áreas residenciais que há não muito tempo tinham lá seu charme de vila ou cidadezinha, com suas casas e edifícios baixos. Havia entre o pedestre e as ruas pelas quais caminhava um acordo de cavalheiros, em que ambos estavam acertados no trato da civilidade. Mas que civilidade resiste à boçalidade de robustas e imensas estacas de aço e concreto armado? Que camaradagem não se perde quando até mesmo o horizonte nos é tirado, o sufocamento pela diminuição dos ventos nos oprime, os carros adquirem o status que deveria ser do homem? Sai a casa de cinco, seis moradores, e o mesmo espaço é ocupado por um monstro de dez andares, duzentos vizinhos azafamados, dezenas de vezes mais lixo é depositado nas calçadas. As cidades brasileiras são, hoje, o que decidimos delas trinta, quarenta, cinquenta anos atrás. Agora imagine um administrador municipal, seus conselhos e associações de moradores em um mesmo passo para pensar, discutir e projetar o que deixaremos àqueles que nos sucederão. Não, não é possível tal exercício, a não ser no campo da mais pura ficção. Vivemos para nós, cada vez mais para nós, o futuro não nos pertence, nossos descendentes haverão de lidar com suas próprias necessidades, cada época que cuide de si, e continuemos a lamentar nosso atraso, nossas obtusidades, nossa incapacidade de acompanhar os bons irmãos do norte, que estes sim, sabem viver e morar. Estes sim, têm algo a nos ensinar.

Mas o brasileiro que olha para cima buscando referências, que amaldiçoa a terra em que pisa como se dela não fizesse parte, deveria olhar para o que em parte éramos, para o que tínhamos por aqui mesmo, para todas as alternativas que foram descartadas em nome de uma verticalização dada como inevitável, e com ela todos os equívocos ambientais, estéticos, urbanísticos. Produzimos algumas das cidades mais feias do mundo, por vezes em lugares os mais belos do mundo, porque insistimos em viver o dia, nada mais que o dia de hoje, nada além do dia de hoje. Cada vez mais trancados em casa, negando o olhar de nossos vizinhos, contrapondo-nos a eles, cuidando apenas de nossos pequenos territórios enquanto apontamos as mazelas alheias, não percebendo que do lado de lá estão a nos apontar com as mesmas acusações.

Há aqueles que perguntam a si mesmos, repetidamente, pela existência do Inferno. Por que descartam a possibilidade de já estarmos a vivê-lo aqui, agora, a cada triunfo da estupidez?  

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