Poderosa que seja a mão do homem, a ela não é possível afundar um continente. Ela pode atacá-lo, mutilá-lo, feri-lo, ocupá-lo, conquistá-lo, colonizá-lo, roubá-lo, torturá-lo, seviciá-lo, mas ele permanecerá ali em sua inteireza, gigantismo e, no todo, impassibilidade.
Em certa passagem de Coração das Trevas, de Joseph Conrad (que a memória não me falhe), Marlow, protagonista e alter ego do escritor, observa com espanto e estranheza um navio a disparar incessantemente contra a costa da África. Não há nenhum alvo específico visível, aldeia, forte, monumento, aglomerado de pessoas, apenas o ponto vazio que antecede o vasto espaço desconhecido aos homens brancos. Marlow busca alguma justificativa, razão ou pretexto, e por fim considera a possibilidade de um mal-estar e um ódio mal verbalizados, que achem no canhestro canhonaço um modo possível de expressão ou catarse, como se aquilo, aquela imensa massa de terra, de qualquer modo fizesse por merecer a violência.
Pois é nesta clave que Conrad constrói seu monumental romance, cuja edição no mais das vezes não ultrapassa duas centenas de páginas. Lançado como uma série em 1899, e publicada em livro em 1902 (e em parte inspirado nas experiências do próprio autor como capitão do vapor Roi des Belges, no Rio Congo de 1890), traz de início um ainda moderadamente ingênuo Marlow em sua busca por Kurtz, chefe de um posto comercial no então Congo belga – que, no que torna ainda mais aviltante o projeto colonial, era acima de tudo propriedade particularíssima do rei Leopoldo II. A caminho do barco que chefiará em sua expedição, e à medida que o Tâmisa é deixado para trás e um novo rio se lhe apresenta, Marlow se despe de certas certezas e sentidos, afundando-se em uma escuridão na qual as conexões que até então estabelecia entre si e o mundo deixam de auxiliá-lo em seu processo de compreensão do que lhe é absolutamente novo, inesperado, brutal. Se Kurtz enlouqueceu, se deve ser resgatado, se o processo civilizatório se perdeu em meio àquilo que nominamos selvagem, cabe quem sabe a ele a tentativa de levar luzes ao que nas trevas permanece.

Contudo, a percepção crescente de que a civilização, paradoxalmente, implementou a mais terrível barbárie – de tal maneira que Kurtz parece justificar-se -, e a noção borrada entre o que é aceitável e inaceitável como ação humana justa, isto somado fará com que a viagem, ao cabo e ao fim, devolva ao lar um novo tipo de homem.
Conrad ilustra com acurácia a alienação dos habitantes das metrópoles europeias, distantes o bastante da fonte de suas riquezas para que se sintam imaculados, as mãos limpas, os espíritos justificados, os propósitos assentados nas melhores intenções, despreocupados e lépidos em seus afazeres, nada importando que não suas obrigações cotidianas as mais vis e mesquinhas, só possíveis a olhos que não viram o horror, dele nada sabem ou não desejam saber, impassíveis e confortáveis, garantidos em sua confortável estabilidade:
“Eu me vi de volta à cidade sepulcral, indignado com a visão de pessoas correndo pelas ruas para surrupiar um pouco de dinheiro umas das outras (…). (A) postura de indivíduos comuns cuidando de suas questões com a garantia de total segurança (…) me ofendia como as exibições revoltantes de loucura diante de um perigo que eles eram incapazes de compreender.”
Tal parece ser esta a questão: a incompreensão que nasce da indiferença, que a alimenta e por esta é alimentada, pois não há que se falar em descaso e desprezo quando podemos alegar, a todo momento, que não compreendíamos, que desconhecíamos a natureza do que fazíamos e a fonte da qual arrancávamos benesses e fortunas, que o ultraje não nos era claro, não nos foi despido; que, afinal, estávamos suficientemente longe para não nos considerarmos envolvidos, jamais agentes, nunca conscientes de um horror que questiona o que, todos os dias, apontamos como civilização.
Ao arrancar Marlow de Londres para fazê-lo navegar no rio Congo, Conrad como que obriga o leitor médio de então a não mais dizer que não sabe, que ignora, que as notícias não lhe chegam. Ao levar seu protagonista a uma das escuridões possíveis à alma humana, espalhou por sobre o solo europeu as cinzas de um sonho colonial tornado pesadelo.