Biografias e memórias (que podem ou não se confundir com autobiografias) ocupam espaço privilegiado em meu coração de leitor, talvez porque eu, como tantos, projete nessas vidas as possibilidades cumpridas (poucas) e não cumpridas (muitas) de minha própria história. Como fetiche, as mais volumosas recebem atenção maior de minha voracidade pelo gênero. Claro, os perfis – pinceladas que traçam um retrato amplo, porém menos minucioso do objeto biográfico – não são abandonados, muitos são deliciosamente compostos, mas confesso que certos indivíduos ou temas, quando exaustivamente pesquisados e apresentados em alentados volumes, têm lá seu poder especial de atração sobre mim. Mas nada importa – profundidade da pesquisa, detalhes fascinantes, personalidades magnéticas, feitos memoráveis – se a redação final é insípida, puramente hagiográfica ou explicitamente maldosa. Há de se ter equilíbrio sem deixar de lado a paixão, como há de se ter um texto elegante, charmoso, com bons ganchos e encadeamento rítmico que nos exija renovar o fôlego (sem nos exaurir meio à leitura).
Dito isto, vai abaixo uma seleta de biografias e memórias que leio e releio, sempre com prazer e avidez. Desejo que as escolhas que fiz despertem em quem me lê a vontade imediata de tê-las para si.
The Beatles – A Biografia (Bob Spitz): por suas 850 páginas, resta evidente que o autor buscou ser generoso e justo para com a maior banda de todos os tempos. De 1962 a 1969 (e é espantoso que estes sete anos pareçam quinze, vinte), o quarteto monopolizou a atenção de fãs, críticos, imprensa e concorrentes (sim, eles existiram). Neste volumaço, a história pré-banda de cada um dos membros corre como um rio na direção da gênese do conjunto, e este só se explica por esta soma única, irrepetível. Não se assuste com o tijolo: é um livro do qual não se desgruda.
O Livro das Vidas: Obituários do New York Times (organização de Matinas Suzuki Jr.): na imprensa norte-americana, os obituários têm desde sempre seu prestígio sem abalos, e aqueles que por eles respondem guardam para si uma tarefa de peso e grande reputação. Não raro (não mesmo) trazem consigo alto valor literário, no que se explica que não sejam entregues a quaisquer penas (teclados). Neste curioso e fascinante livro – ótima amostra desta arte -, somos apresentados a pequenos e saborosos perfis de “pessoas comuns que fizeram coisas incomuns”. Seja na figura de Stanley Adelman, “cuja oficina de consertos de máquinas datilográficas era uma UTI para os solta-margens estragados e os carros que embirravam na hora de mudar de linha nas máquinas de escritores famosos”, seja no retrato do piloto de avião famoso por uma única viagem – saindo de Nova York para Los Angeles, acabou por aterrissar em Dublin -, vidas extraordinárias nos emocionam em sua ordinariedade.
Lawrence da Arábia -The British Library (Malcolm Brown): esta coleção, que apresenta ao público leitor vidas de renome, traz-nos neste volume a lenda T. E. Lawrence, para sempre colada em nossas retinas pelo majestoso filme de David Lean. O visionário, aventureiro, soldado e escritor britânico que capturou a imaginação de tantos por seu papel na Grande Guerra é aqui dissecado em sua impetuosidade por vezes insegura, sua determinação por vezes frágil, sua têmpera por vezes incompreendida. Neste livro vibrante, percebemos os estertores do fascínio ainda possível de um mundo a ser desbravado.

O Anjo Pornográfico: A Vida de Nelson Rodrigues (Ruy Castro): Ruy chegou a este livro em seguida à saudação que recebera por conta de sua história da Bossa Nova, mas com um desafio imensamente maior: tirar a poeira e afastar os erros de conceito da execrada ou adorada figura de Nelson Rodrigues. Até então, trinta anos atrás, não havia posições outras que não a de seus fiéis seguidores ou aplicados detratores, ambos sequestradores de um Nelson que parecia indefeso diante da má compreensão. Seu biógrafo afasta os dois extremos e apresenta um Nelson multifacetado e impossivelmente rotulável. De quebra, traz com seu biografado um Rio de Janeiro fascinante – já morto e sepultado.
O Afeto Que Se Encerra (Paulo Francis): Francis foi, a partir dos anos 70, figura controversa como o Nelson acima, tão capturado pela direita quanto odiado pela esquerda, um traidor consumado desta, e um bajulador daquela. Nisto, poucos atentaram para sua trajetória, a raiz de suas escolhas e o conjunto de sua obra jornalística. Nestas memórias, publicadas ao fazer 50 anos, em 1980 (parece precoce, não?), acerta contas consigo mesmo e com um Brasil que não mais reconhece, em especial um Rio de Janeiro que amou e desprezou com a mesma intensidade. “Fiz tudo, errado ou certo, na hora certa (…)”, confessa com enorme pungência. Comoventes, honestas e cortantes, são reminiscências que não condescendem nem concedem, e parecem cada vez mais para poucos.
Sir Richard Francis Burton: o agente secreto que fez a peregrinação a Meca, descobriu o Kama Sutra e trouxe As Mil e Uma Noites para o Ocidente (Edward Rice): ufa!, não é mesmo? Quantas vidas podem ser vividas no espaço de uma vida? E o que colocam na água dos biógrafos britânicos, meu Deus?! Mas não se enganem: o extenso título não entrega mais que pequena parcela deste homem incomum, poliglotíssimo, erudito, intrépido, que não se deixava paralisar pelos riscos e que se entregou ao mundo com tudo aquilo que o mundo de então (falamos do século XIX) se lhe oferecia. Para ler e sentir no espírito as agruras de uma travessia na África, ou o tremor de se ver em cidades de todo hostis ao estrangeiro.