Para os que estão em casa

“Ter um amigo, olhá-lo, segui-lo com os olhos, admirá-lo na amizade, é saber de maneira um pouco mais intensa e antecipadamente contristada, sempre insistente, inesquecível cada vez mais, que um dos dois fatalmente verá o outro morrer. Um de nós – diz cada um consigo – , um de nós, chegará esse dia, ver-se-á não mais vendo o outro.”

Jacques Derrida

Segue abaixo texto achado dias atrás, resultado de uma daquelas limpezas de arquivos que fazemos de quando em quando. Eu sequer suspeitava de sua (ainda) existência, pois lá se vão décadas. É muitas vezes pueril e ingênuo, mas sempre autêntico. Deixo-o aqui como uma marca do que fomos, de tudo aquilo que fizemos e de todo o muito que não deveríamos ter feito. Quem sabe, assim, aquele menino que se foi talvez estivesse por aqui, amando e sendo amado de corpo presente, envelhecendo conosco. Ele, que depois daquela noite jamais voltaria a ser, a estar, a sorrir para mim.

Não sei quantas vezes subi e desci esta rua, são cinco da tarde e não faço outra coisa desde o almoço. Não, almoço não, não como coisa alguma desde a noite de ontem, um sanduíche qualquer que empurrei goela abaixo sem sequer senti-lo. Emagreci alguns quilos, ainda não sei quantos, mas todos dizem que emagreci, então deve ser verdade. Não tenho me olhado no espelho ultimamente. Aliás, pouco tenho feito. As aulas na UVV e na Faculdade de Turismo de Guarapari correm como se eu não estivesse lá. Creio que não estou mesmo. Cristiane tem me ajudado, ela sabe que dor é esta, uma parcela está lá com ela. A bebida não tem ajudado muito, ou tem ajudado bastante, não tenho ainda ponto de vista sólido a respeito. Maio está chegando e esta sombra não passa, parece que ficará estacionada cá dentro um bom bocado. Devia estar feliz, por que não? Duas faculdades encerradas no final do ano passado, uma namorada que me quer sinceramente e… Não, não está funcionando, já tentei este jogo e sei que quebrarei a cara. Estava assustado em dezembro passado, um tanto eufórico também, as possibilidades pareciam saltar em minha direção, quem sabe até não poderia casar e me estabelecer definitivamente por aqui, a rede de amigos próxima, um ou dois empregos como docente, o turbilhão adormecido etc.

O 31.12 encarando o começo de madrugada prometia, estávamos engarrafados na Praia do Morro, dois casais e dois amigos aos pulos e berros, todos aceitando o fortuito da situação e projetando um 92 bacana. Cris não quis emendar a badalação com a festa na Lua Azul, boate que nem era (é) minha praia, mas que estava balançando o espírito da rapaziada. Lembro-me que nos despedimos na entrada de seu prédio, e seu primo subiu e desceu me entregando a chave do Passat. Pois é, meu futuro sogro confiava em meu taco a ponto de me passar o carro mesmo sem a presença da filha. A cerveja batia devagar, sacolejava um pouco meu cérebro, eu sabia que o espaço a ser preenchido comportava ainda aquelas pequenas garrafas de uísque que eu trazia nos bolsos da calça, os seguranças da boate nada sacariam com aquela confusão, aquela onda de gente que parecia sumir assim que a porta de acesso era deixada pra trás. Não foi preciso marcar nada, eu sabia que todos estariam lá, era o destino natural de uma turma que estava convencida que aquele point reuniria e resumiria e condensaria o porrilhão de tesões daquela passagem de ano. Joguei o automóvel no barro, e me senti mais alcoolizado com a visão da entrada abarrotada, alguns amigos e conhecidos já identificados, a música estourando dentro do peito. Atravessamos o deck e abrimos espaço até a pista, às cotoveladas. Alguém não estava lá? Podia sacar nos olhos e nos cheiros daquela rapaziada que o ano de 91 esbarrava ali em seu ápice, um épico de gala para um ano em que tantos descobriram tanto, um período em que instalei Guarapari em minha´lma, em que deixei no acostamento da estrada uma Vitória e uma Vila Velha que sabiam a mofo, que nada mais me diziam. E aquela festa esfregava em nossas caras o absurdo da beleza de simplesmente estar ali, o estar ali significando por si mesmo, bastando-se, bastando-nos. Estávamos construindo a nossa pequena-bela-grande pra caralho história e definindo como seríamos, não havia molde, perspectiva clara, porra nenhuma, tudo podia ser feito e efetivamente cagávamos tudo e mesmo assim as gargalhadas eram nossas, tudo estava perto o bastante pra que queimássemos nossas mãos ao tentar o toque, mas aquele fogo era nossa motivação, entendem? Como se a mão contraída pelo calor pudesse funcionar melhor, sem medo. Ok, eu era um pouco mais velho que a média dos irmãos, mas o sentimento de risco movia a todos indistintamente, e era a sua percepção que funcionava como liga. As garrafinhas de uísque sumiram na pista de dança, e não havia mais relógio, passagem de ano, formaturas e que tais; lembro-me claramente das expressões faciais, das palavras mastigadas e do suor, era a vida acontecendo a cada segundo. Quantas vezes a vida acontece segundo a segundo, sem interrupções? Quantas vezes podemos sentir isto? Conheço quem considere essa montanha-russa um segredo único. E era nossa, mais uma vez. Foi quando Sergio surgiu, insano, insinuando sua partida. Percebi o tamanho da merda no ato, aquilo que muitos consideraram mais um prato de loucura na grande refeição de loucuras em horas como aquela. Pedi ao amigo mais próximo que o segurasse, apenas o tempo necessário para que eu deixasse um recado aos outros, e eu o encontraria, e tudo se revolveria, e sempre funcionou assim, e tudo haveria de ser como sempre foi (mas que diabos eu fiz, meu Deus?!).

Nem cheguei a deixar a boate. Um segurança me prendeu tempo suficiente (insistia que eu não poderia retornar, se saísse) para que Sergio conseguisse disparar em seu carro. O amigo que me aguardava não soube o que fazer, ou talvez não houvesse nada a ser feito, e paciência (era o que pensávamos, acho). Um dos gorilas ainda sorriu, e disse que poucas vezes viu alguém sair tão rápido daquela boate. Como o ocorrido não era novidade alguma, e vez ou outra alguém sumia sem maiores delongas (para nos contar depois o fim de noite em algum boteco), relaxamos o possível e voltamos à bagaça, a certeza idiota de que aquilo seria mais uma boa história, um causo a ser consumido diante de algumas cervejas nas noites seguintes. Mas sabíamos que era diferente, todos sabiam. Porque ele saiu de lá com a cabeça plena de bolinhas e álcool, porque o coração do cara não batia no nosso compasso, porque a mulher de sua vida – naquele momento da juventude em que todas as mulheres ganham dimensões que depois sequer consideramos – o deixara de lado dias atrás – e estava lá, a boca na boca de um terceiro qualquer. A mistura que todo homem quer evitar, aquele encontro de circunstâncias/paixões que não queremos olhar de frente, a podridão dos planos conjuntos jogados na calçada, expostos por inteiro. Uma dor que eu não conhecia, panaca-babaca que fui-sou. Poucas horas depois eu estaria ajeitando a areia da Praia dos Namorados, buscava um travesseiro, a roupa colada na pele e o sol me pegando sem óculos, o uísque e a cerveja poros afora, o sorrisinho escroto de missão cumprida emoldurando sabe-se lá o quê. Na segunda acordada, rumei para meu apartamento. Joguei-me na cama com o sal no corpo, e antes mesmo do primeiro sonho torto fui acordado por minha irmã, que dormia no quarto de cima. Consegui distinguir as palavras “Cris-Sergio-acidente”, e algo me ejetou do colchão, a ressaca deixada em algum canto escuro. Na porta, uma Cristiane descansada e assustada chorava, e me dizia que algo estava perdido. Um garoto de dezoito anos estava perdido. Um devaneio coletivo havia partido com ele. Merda, eu SABIA que aquela saída atrapalhada da boate era mais que um fragmento de desamparo, era um flash do desespero do amor distante potencializado pelas drogas da hora. Ele dirigira seu carro até o Guarapari Center, as pedras da praia como alvo. O Fiat Uno espatifado não dava respostas, a opção pra sempre perdida. Recusei-me a ver o corpo no caixão, um cantinho no velório já me bastava. Ainda ganhamos fôlego para algumas memórias, um tentar deixar para lá que segurasse o soco no fígado.

A imagem que trago mais viva é a de Sergio na chuva, dias antes da tragédia, saindo de meu carro para ganhar o caminho de casa, um convite recusado para que eu o acompanhasse, os pés descalços e trôpegos, e ele chorava baixinho. Era possível ver as lágrimas nos olhos do cara, mesmo com toda aquela água. Nunca me absolvi desta culpa. Não é um remorso fabricado, não é algo que eu queira exibir como penitência, juro. Guardo-a cá comigo, jogada em algum nicho de meu tórax. Minha crença no valor absoluto da (própria) vida desceu o ralo naquela madrugada-manhã. Vamos pagar todos os nossos pecados nos anos vindouros. Espero pagar todos os meus em um só dia. Quero partir.


Caio, Guarapari, abril de 1992
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