Um spray para muito além do Cambuci

Chegamos ao Rio numa manhã de sexta mezzo nublada, depois de uma tranquila viagem de avião. Éramos nós, Caio e Sizue, e os pais desta, meus queridos sogros. Tínhamos uma programação mais ou menos alinhada: a razão principal era o show de Chico Buarque no dia seguinte, ali pertinho do Aeroporto Santos Dumont e do local em que ficaríamos. Então, como se pode ver, havia uma vasta agenda a ser preenchida entre aquela chegada e nosso retorno, na noite de domingo.

Depois de deixarmos as malas no hotel, decidimos por ir ao Parque Lage e ao Jardim Botânico, e no primeiro aguardamos cerca de vinte minutos por uma mesa para nosso desjejum. Em um dia de início abafado, uma boa e refrescante refeição restava providencial. Feito isto, passeamos um tantinho pelas trilhas do parque bicentenário e rumamos para logo ali, às mesas do tradicionalíssimo e acolhedor Braseiro da Gávea, onde almoçaríamos. Comida farta, gostosa, chopps bem gelados, e a habitual balbúrdia papística camarada carioca em todos os cantos.

Emendamos, satisfeitos, para um rápido descanso no local de hospedagem, e depois resolvemos seguir para a Confeitaria Colombo, cartão postal e point de iguarias mil. Uma fila de espera de quase uma hora, e entramos pouco antes da cerração de suas portas. Valeu muito a pena, claro, tanto que o que seria um prosaico lanche ganhou ares (e peso) de jantar antecipado.

Só que, no caminho para lá, observamos dezenas e dezenas de pessoas circundando o belíssimo prédio do Centro Cultural Banco do Brasil, e sem conseguir verificar de dentro do Uber do que se tratava, questionamos a respeito o solícito motorista, que nos informou que toda aquela agitação vinha da grande mostra d´OSGEMEOS, gratuita, que ali estava há dias, apresentando uma rica retrospectiva com os irmãos paulistanos que saíram da perifa de São Paulo para os EUA, Europa e muitas outras terras, e que há muito dispensam maiores apresentações. Coçamos queixos e cabeças e, aconselhados pelo disponibilíssimo anfitrião ao volante, resolvemos que voltaríamos no dia seguinte, matutinamente, assim evitando a imensa aglomeração. Foi o que fizemos.

Por volta das 10h30 do sábado, ganhamos lugar vantajoso na serpente que começava a se formar no acesso à exibição, e munidos de nossos passes gratuitos, adentramos o prédio que em pouco tempo estaria apinhado. Havia uma rota a ser seguida, cronológica, que discorria biograficamente sobre os artistas. Na primeira sala, centenas de artigos (entre fotos, latas de spray, casacos grafitados, esboços de desenhos em cadernetas) traçavam o caminho do Cambuci para tantos outros lugares. Curioso e emocionante ver que sua família cedeu a casa em que moravam para seus primeiros grandes painéis, numa aposta e numa generosidade talvez incomuns para muitos.

À medida que vencíamos etapas, o grafismo ganhava musculatura e petulância, com seu gigantismo espalhado por prédios, muros e mesmo um avião (!). É preciso dizer que, para além de seus personagens de pele amarela – uma das fortes marcas da dupla -, explode com clareza que uma posição (um posicionamento) foi desde cedo estabelecida, seja a de dar espaço e voz ao hip hop nacional, e por meio dele lançar luzes sobre certa cena e população – povo este que consegue observar em tudo aquilo traços e gostos que dizem algo ao espírito, que são imediatamente identificáveis, próximos, uma plataforma para a possível expansão das sensibilidades. Eles realmente sabem o que fazem, e fazem o que desejam muitíssimo bem. É proposta de gente graúda, e não vou esconder aqui que me surpreendi, já que não os conhecia mais que o usual entre certa fatia de consumidores. Há ali, sim senhor, relevância artística, algo entre a arte de rua e o cartum, como se Angeli (influência descarada e declarada) saísse de revistas e jornais e invadisse o concreto de praças e avenidas mundo afora. Funciona, canta, por vezes comove. É inegavelmente panfletário, prosélita e combativo, mas nada fala tão alto quanto o que se expressa puramente pela arte que produzem.

Depois de lá (permanecemos cerca de 2h), muito mais coisas acabamos por fazer. E da mostra, bem como da viagem, saímos felizes. Leia mais, veja mais os melhores filmes, ouça os bons sons, aproxime-se de todo aquele que faz algo de (real) valor. De gente produzindo coisas ruins, já deu. À arte de baixa qualidade, qualquer uma, deixemos de dar alimento. E que, de inanição, morra. Ou pelo menos definhe.

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Imagem do Twitter

Você está comentando utilizando sua conta Twitter. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s

%d blogueiros gostam disto: