Nas férias de janeiro de 2000, em Fortaleza, na livraria do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, dei com Ela é Carioca, de Ruy Castro, novinho em folha. Como já havia lido Chega de Saudade: A História e as Histórias da Bossa Nova (1990), O Anjo Pornográfico: A Vida de Nelson Rodrigues (1992) e Estrela Solitária – Um Brasileiro Chamado Garrincha (1995), já sabia o que precisava saber sobre o autor. Comprei no ato.
Ruy tem uma prosa deliciosa, sem academicismos e frescuras, inteligente, nem passando por sua cabeça subestimar quem o lê. Nada é rasteiro, as referências ao cinema e à dramaturgia, à literatura, à imprensa e televisão, ao vaudeville, ao contexto sócio-político da época que retrata, às modas e manias são tão diversas e profusas que o leitor desavisado deve se escorar em pilastra ou afundar no sofá para ganhar fôlego, e de seus livros qualquer indivíduo curioso parte para muitos outros campos. Quando ele escreve, é pra valer.
Costumo dizer (creio que outros o dizem, não sei) que Ruy Castro redigiu, informalmente, a biografia da cidade do Rio de Janeiro no século XX. Ao falar de seu futebol, de suas boites e boates, de suas gafieiras, de suas figuras de folclore, de seus artistas, de suas rodas de intelectuais, de sua culinária, de sua geografia, de seus papos de boteco, de seus bêbados anônimos e nada anônimos, de sua malandragem das ruas e dos morros, de seus muitos movimentos culturais, acaba por apresentar a história nada vetusta da antiga capital colono-imperial-federal. Não sendo historiador de ofício, não usando casaca e sem medo de escrever inteligivelmente, ele nos conta como pulsa um povo, como se orienta, estimula e faz suas escolhas, pouco preocupado com seus mandarins, citados quase sempre como baliza patética e inconveniente. De sua perspectiva, os chefões são quase sempre palhaços de quinta, no que estou plenamente de acordo. Governem e tentem atrapalhar o menos possível, meus senhores.

Então, como dizia lá no alto, depois de uma tranquila ida de avião à capital cearense, acabei convencido por meu primo que lá morava a traçar o caminho de volta para minha cidadezinha sudestina de ônibus. Ônibus!, ônibus por quase 40h, atravessando o nordeste com garbo e fôlego. Provavelmente me municiei do livro tão rapidamente (também) para um refresco de tão lúdica viagem.
Assim, entre cochiladas extensas, pouquíssimo sono e muitas paradas (algumas no meio do nada, para nada que fosse identificável), deitei olhos nos 231 verbetes que compõem o mosaico de Ipanema, bairro-objeto da obra. Mas que maravilha!, mas que deslumbramento!, mas que perfis saborosos! De um cachorro (Barbado) a homens e mulheres de fama mundial – e muitos outros que fora daquelas fronteiras não eram nada conhecidos -, de bares e botecos a teatros, da Bossa Nova ao Cinema Novo, de Millôr a Paulo Mendes Campos, de Vinicius a Ferreira Gullar, da Garota de Ipanema às Dunas do Barato, do Asdrúbal Trouxe o Trombone ao Circo Voador, de Hugo Carvana ao Simpatia é Quase Amor, de Miéle a Olga Savary, de Paulo César Saraceni a Lúcio Cardoso, do indomável Roniquito ao Pasquim, está tudo lá, ou quase tudo, ou mais que tudo. Dá pra engatar um no outro, ou marcar o que foi lido e pular páginas; dá pra ver todas as (ótimas fotos) de uma vez, e dá pra parar a cada verbete mais extenso ou rico ou exótico anotando suas muitas coisinhas interessantes. Aquele livro, aquele lugar, aquela rua, aquela praia, aquele movimento ou balanço dos quadris, aquele cara ou aquela moça bacanérrimos que, valha-me Deus!, eu não sabia que existiam até então.

Vai abaixo o segundo parágrafo da introdução (Uma Província de Cosmopolitas), do próprio autor, uma palhinha entre o salgado do mar e o sorvete na casquinha a derreter levemente:
“Sem contar a faixa de areia e a orla da Lagoa, Ipanema tem 1,67 quilômetro quadrado. É pouco menor que o Principado de Mônaco (mas sempre foi muito melhor). Dentro dessa estreita faixa, que se atravessa a pé em duas horas, produziu-se a maior quantidade de cronistas, poetas, romancistas, designers, arquitetos, cartunistas, artistas plásticos, compositores, cantores, jornalistas, fotógrafos, cineastas, dramaturgos, roteiristas, cenógrafos, figurinistas, atores, diretores de TV, modelos, estilistas de moda e esportistas de que se tem notícia no Brasil. Ali surgiram também as mulheres mais famosas do país, inúmeras delas dublando em uma ou várias das categorias acima. E todos eles, homens e mulheres, com características em comum: libertários, boêmios, lúdicos, corajosos, excêntricos e, por sorte, não extremamente responsáveis.”
Irresponsabilidade muitas vezes, sim senhor, mas pra que ser lá meio responsável com toda aquela vida a ser vivida? Em meio a certa cafonice, ranhetice e obsolescência, Ipanema brilhava como a vitória de uma imaginação – que, se não acertou em tudo e tantas vezes enfiou pés pelas mãos, ao menos não levou nada muito a sério. E não levar nada muito a sério exige um bocado de compromisso.