“Olhou para o filho, viu-o pequeno aprendendo a andar, acompanhou com lágrimas de amor toda a infância dele, carregou-o no colo, sentou-se numa varanda pensando no milagre de seu menininho pela primeira vez usando palavras, pela primeira vez tendo uma opinião, pela primeira vez fazendo alguma coisa sem razão como é próprio do homem, pela primeira vez compreendendo que tinha um pai, pela primeira vez molhando as mãos na água da chuva, pela primeira vez se dando conta dos bichos, pela primeira vez cheirando uma fruta, pela primeira vez descobrindo que não podia olhar para o sol, pela primeira vez vendo um peixe, pela primeira vez procurando uma razão, pela primeira vez correndo por cima da areia da praia, pela primeira vez provando sal, pela primeira vez sacudindo o corpo por ouvir música, pela primeira vez se ensimesmando a um cantinho com sonhos e pensamentos só dele, pela primeira vez confiando num amigo, pela primeira vez olhando com maravilhamento para as mãos. Como pode, quem sente, esquivar-se de virar uma espiral de fogo, apenas por testemunhar a vida?”
Quem o conhece que esqueça, se puder, os dois Jabutis e o Camões, que são só… prêmios, e prêmios cada vez dizem menos. João Ubaldo Ribeiro ficou e continuará ficando na literatura, qualquer literatura, pelo trato dado à língua portuguesa, esta tal que deu a si mesmo a tarefa nobilíssima e árdua de traduzir seu grande romance (do qual vai o trecho que encima este texto) para o inglês – quem mais poderia verter para outro idioma a exuberância do português que ali se encontra?
Quando mocinho (olha que bonito, já fui mocinho), ainda nos corredores da (não muito) excelsa Universidade Federal do Espírito Santo, acabei por arrebanhar de sua biblioteca central o livro de que aqui trato, Viva o Povo Brasileiro (que acabei de reler com o mesmo maravilhamento). Tinha este, à época, ainda o cheiro e o frescor de um lançamento (1984), mas já saudado aqui e acolá como clássico. Lembro-me de me recostar em pilastras do pouco vetusto centro de educação física e desportos, para, no entre aulas, ler com avidez o calhamaço (renovando uma ou duas vezes o empréstimo). Rodopiando meus vinte anos de idade, não pude mais que me aproximar do mosaico de odores, cores, barulhos, gentes, matas, mares e céus do romance, uma contação viva, genuína e agarrada na paixão das manhas, artimanhas, jeitos, trejeitos e reboleios da caminhada atarantada, sob chibatas, ferros e pancadas, do que por aproximação chamamos de povo brasileiro. Mas ora se este não é um livro que pulsa e verte sangue, que maravilha e embebeda no trato que dá às palavras, tão cheias de carne, sangue, ossos e vísceras que parece que, sei lá, diga aí você que talvez um dia o leia, tudo aquilo que ali acontece desde os mil e seiscentos acontece é conosco mesmo, mesmo aos abestados que acham que são outro povo.

Porque João Ubaldo Ribeiro jamais fez força alguma para resistir a este povo. Itaparicano de fibra, homem da terra que chamava a Salvador que via diante de si Bahia, ilhéu de quatro costados, dos pés em chinelos que arrastavam o barro das ruas, visto habitualmente em bermudas, sem camisa, os aros dos óculos cercando as lentes de fundo de garrafa que lhe serviam de marca. Sargento Getúlio, pouco mais de década antes, lançou-o como nome a ser considerado no cenário literário brazuca, e seu mui vasto Viva o povo… atarraxou nome e sobrenomes de uma vez por todas entre leitores acadêmicos, não acadêmicos e quem quer que desejasse se esbaldar naquela prosa lambuzada de delícias.
Prosa em língua nossa, esta que ao menos não nos roubam.