Um labirinto com Borges em seu centro, sentado à mesa hexagonal que lhe serve de escritório, cercado por um número indefinido de tigres que são multiplicados por espelhos. Dickens em lágrimas sobrevoando o Tâmisa, uma criança em cada uma de suas mãos. George Eliot recostada num moinho, olhando fixamente para as águas de um rio. Dostoiévski esbarrando em transeuntes enquanto caminha de olhos baixos, murmurando algo para si mesmo. Tolstói ignorando as ladainhas de sua mulher em meio a uma ereção tardia. Nelson Rodrigues puxando uma moeda esquecida do bolso de seu paletó. Eça de Queiroz verificando os vincos de suas calças.
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Lendo Sir Walter Scott, é perfeitamente possível sentir o fio das espadas e o gume das armas de haste, ouvir o resfolegar dos cavalos chapinhando as águas de um córrego na borda de uma floresta, respirar as tortas de pombo e a podridão de um calabouço. É densa a indignação da moça diante do canalha, a intrepidez do arqueiro, a covardia do nobre. Nenhuma insipidez, todo gesto conta e as vidas, sem cessar, somam ao mundo e dele subtraem. Um escritor que não transmita isso deveria escrever com a caneta na boca, ou digitar com o nariz.
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Guimarães Rosa cruza na rua com Graciliano Ramos, que lhe vira o rosto. Este cruza com Oswald de Andrade, que dispara a gargalhar e lhe aponta o dedo médio. Oswald passa por Clarice Lispector, que apaga o cigarro em seu (dele) pescoço. Clarice tropeça e cai no colo de um Mário de Andrade horrorizado, que suspira e perde os sentidos. Rubem Fonseca, ao vê-lo no chão, corta uma de suas orelhas e a guarda no bolso do paletó. Todos ignoram Rubem.
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Cronistas brasileiros que jamais falem do Brasil. Nenhuma São Paulo, de agora ou do século passado. Nenhum bairro da zona sul carioca. Zero Alterosas. Salvador, ora, convenhamos. Escreveriam sobre lugares que não conhecem, nunca visitados. Assim, ó: “Ano passado não estive em Ulan Bator, e aproveitei imensamente. No vale do rio Tuul, uma brisa morna e a visão de um mosteiro ao lado de um prédio soviético fizeram com que…” Ou: “Viajando pelo Mali, que jamais virei a conhecer, vi-me cercado por voltaicos, songaicos e tuaregues, meus pés enterrados bons vinte centímetros na areia do deserto, a mão no punho da espada, quando percebo um cavaleiro de…” Ou ainda: “São seis horas da noite mais fria do ano em Saravejo; apesar d´eu não estar lá, um membro da temível Mão Negra jaz aos meus pés, e do tiro que lhe dei entre os olhos flui um sangue escuro como o petróleo…”
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Leio em J. M. Simmel: “Ela tinha as curvas de um iate esportivo”. Gosto muito da imagem. Acaba que me sugere muito dessa mulher, e posso imaginá-la cortando águas, furando ondas, enfrentando tempestades, seus estibordo e bombordo sinuosos sempre úmidos, a proa empinada, confiante, enquanto sua popa volumosa e harmoniosa deixa rasgos na superfície.

Brasília destruída. Nos destroços do Ministério da Fazenda, um homem calvo e de terno aos frangalhos mastiga as orelhas de um sindicalista. Na rampa do Palácio do Planalto, jornalista da CNN Brasil cavalga nua o presidente de uma estatal qualquer. Nos gramados cheios de cadáveres, passeia uma mocinha de livrinho vermelho às mãos, enquanto balbucia “golpistas não passarão”. Na torre de televisão que ameaça cair, pendurado em um grande vergalhão torto, Henrique Meirelles brada a cotação do dólar. Quatro deputados federais rolam abraçados no asfalto esburacado pelas bombas, aos gritos de “fake news!”, “nossa bandeira jamais será vermelha!” e “o amor venceu o medo!”. A caixa de som no teto de um Corcel branco 1975 insiste que “as instituições da república mostram sua vitalidade”. Senador pela Bahia, cego de ambos os olhos e sem uma das mãos, grita desesperadamente, enquanto suas partes íntimas são mordiscadas por um filhotinho de rottweiler. Três senhorinhas de camisa da seleção brasileira rezam ajoelhadas. Levado pelo vento, editorial do Globo garante que o estado democrático de direito está garantido. Reinaldo Azevedo, que passava por ali, corrige, e escandindo as sílabas, diz bem alto: “Estado democrático E DE direito”. Diplomata inglês, olhos esbugalhados, sussurra melancolicamente “Dr. Livingstone, i presume”. Apresentadora do Jornal Nacional pede calma à multidão que lhe arranca os membros. Multidão que então arrancava os membros de apresentadora do Jornal Nacional troca de canal e passa para José Luiz Datena, que imediatamente pede imagens de helicóptero. Uma brigada do exército se aproxima da esplanada dos ministérios cantando Let´s Face the Music and Dance. Editorial da Folha defende medidas duras do STF. Caetano Veloso – ou alguém muito parecido, a tv não filmou direito – diz pela milésima vez que não estamos entendendo nada.