Há uma nave no céu

Texto que encontrei em velho entulho de posts. Com revisão pontual, publico aqui. Dos tempos em que gostava de me imaginar um crítico de rock (risos). Minha admiração na turma sempre se dirigiu àqueles que se posicionaram diante da música como se dela suas vidas dependesse. A fleuma permitida, muitas vezes justa e até admirável quando um livro é o objeto de nossa atenção, nestas plagas raramente cabe. E, quando cabe, está a falar mal do que ouvimos.

No mais, foram oito horas indo e oito voltando, em uma van por mim alugada. TINHA que valer a pena.

E mais ainda, este é dos poucos textos que consegui salvar de minha devastadoramente ruim produção blogueira de muitos anos atrás. Sua marca (minha produção de então) é a arrogância imbecil, irmã distante da arrogância sutil e sob controle. Vez ou outra me permito um sorriso de canto de boca diante das imensas porcarias que não só escrevi, mas temerariamente compartilhei. Assim… hum… o português estava até certinho, não fazia feio, as ideias por vezes podiam ser defensáveis – mas o estilo era não menos que medonho. O post abaixo salvei do incêndio, percebem-se nele queimaduras de segundo grau, e o leitor de boa vontade talvez possa considerar algum valor. Fica como evidência de um escrevinhador petulante, com mais vontade de falar que coisas a dizer. Perdoem-me, eu não sabia o que estava a publicar.

Nove de março de 2002, Rio de Janeiro, Praça da Apoteose. Não sei quanto a você, meu amigo, mas eu estarei lá, firme. Tanto quanto as afinidades musicais, movem-me as sentimentais. Esquisito associar tal emoção a um subgênero, o progressivo, que para muitos sabe à frieza – quase humanamente inorgânico, enfim? Não quando se trata do sujeito capaz de juntar a melodias incomumente belas estes pungentes versos: ´Quando criança/Olhei de relance/Com o canto dos olhos/Virei-me agora para olhar/Mas havia sumido/Agora está fora de meu alcance/A criança se foi/O sonho se foi/E estou confortavelmente entorpecido (Confortably NumbThe Wall – 1979)´.

Já ao redigir mentalmente o que vai acima, pensando no que inevitavelmente escreveria, expressei a amigos as restrições de praxe ao caminho solo de Roger Waters. Mas ressaltei que nada disso faria diferença quando aquele senhor de cinqüenta e tantos anos, cabelos muito grisalhos, circunspecto em seu porte inglês, pisasse ali, no terreiro do samba global. Pelo menos não para aqueles que amaram, trabalharam, odiaram, suaram, transaram, batalharam, venceram e perderam, expostos e abrigados por Mother, Shine On You Crazy Diamond, The Great Gig in the Sky, Time, Goodbye Blue Sky, Echoes, Breathe… Se um coração permanece a bater em teu peito, você estará lá – deste modo me manifestei, simultaneamente grave e ridículo (pois que, patético).

Este, pois, era o retrato de minhas expectativas e ansiedades em relação ao homem que marcou as muitas adolescências que vivi. O homem de cuja cabeça saiu o álbum (e o filme) que marcaria minha entrada (fórceps total) na bad trip adulta, com seu estúpido (e, parece-me, ao menos em meu caso, inevitável) redemoinho de angústias, frustrações e nostalgia; o sujeito que melhor expôs o ridículo e o vazio em que o rock caíra, prostrado e autoindulgente, ao fim de uma década (os 1970) de excessos masturbatórios.

Dada esta relação rasgada, caminhei entre as arquibancadas do sambódromo com a convicção de que, acontecesse o que acontecesse, Mr. Waters não me deixaria na mão. Afinal, sem tal fé a me conduzir, como enfrentar filas (de automóveis e gente, gente meeeeeeesmo), cerveja a preço extorsivo e adolescentes em ponto de combustão? 

E, para a felicidade de nossa pequena e orgulhosa nação, a fé no Floyd de tantas e boas guerras conduziu-nos em suave balanço a outro universo, este estranhamente belo e perverso, chiaroescuro.

E, às 21h15 daquele sábado, de meu muro um tijolo deitei ao chão (argh!, quanta afetação!).

Ao entrar no palco, embalado por excepcional banda – e está aí uma das grandes qualidades do homem, cercar-se sempre de boa gente -, o jogo, ainda no início, já estava ganho. E não de maneira fácil, já que sua longeva carreira não lá possui a marca das concessões. Ganho porque ficava claro que ali estava alguém que não só representava um marco roqueiro desde sempre, como disto tinha plena consciência, no que tratava show e platéia com absoluto respeito, seguro de que dar o melhor de seu repertório não o acorrenta ao passado – trata-se tão somente do imodesto e merecido reconhecimento público de (sua) importância e grandeza. Quantos músicos de um meio tão seviciado podem olhar para a estrada que construíram e sorrir, acariciando as cicatrizes?

.É provável que parte dos trinta e cinco mil presentes ali estivesse não mais que pela possibilidade de conferir, ao vivo e em dezenas de cores, a lenda de que seus pais e/ou amigos mais velhos lhes havia falado, checar a veracidade de algumas histórias, ou simplesmente poder bater no peito e dizer: ´O cara do Pink Floyd? Estive lá, eu vi!´

E daí? A eles foi dado mais, muito mais, como par exemple um som que poucas vezes os brazucas tiveram à disposição, abraçando – sim, abraçando – todos os cantos concretos da praça. Como imagens projetadas em um telão no fundo do palco – mais que apenas ilustrar as canções, são delas membro fundamental .

O show? Vamos a ele.

Logo de saída, jogam-nos nas faces a sequência artilheira In the Flesh/The Happiest Days of Our Lives (sintomática, não?) e, apoteótica e cantada/gritada pela massa, Another brick in the wall, part 2 (The Wall). Pouco depois, em um crescendo de emoções díspares – um amigo chegou a dizer que o que assistia/ouvia lhe causava, simultaneamente, euforia e depressão -, aterrissamos na dissecação do disco Wish You Were Here (1975), apresentado na íntegra e em sua ordem original, com a exceção (diabos!, por quê?) de Have a Cigar. Destaque para a execução – em duas partes não contínuas, como a conhecemos no disco – mais que perfeita de Shine on You Crazy Diamond, marcada pela aparição, no telão, de seu inspirador Syd Barret, em um réquiem para o amigo recluso na insanidade. Neste momento, companheiro, as pernas fraquejaram. Curiosamente, Wish You Were Here não se apresentou climática como esperávamos todos – milhares de vozes a tornaram menos, digamos, comovente.

O intervalo de trinta minutos que se seguiu a este bloco, longe de ser broxante, permitiu-me a recuperação física, mental e emocional para um mais introspectivo segundo ato, em que o cantor/baixista apresentou canções de sua vida (não tão) longe do monstrengo Floyd, ouvidas em silêncio respeitoso, raro nestas ocasiões de habitual impaciência. Mas seguraram com valentia a peteca, balizando com dignidade a tempestade clássica de músicas como Time, Money, Brain Damage (aqui, ainda mais fantasmagórica) e Eclipse, todas do mítico The Dark Side of the Moon (1973). Os latidos de Dogs (Animals – 1977), uma das muitas canções-emblema do supergrupo inglês, arrepiaram o público, naturalmente mais contido nas músicas dos álbuns A Saucerful of Secrets (1968) e The Final Cut (1983), este o último com os quatro caval(h)eiros reunidos.

Falhas? Bem, com a exceção do solo de sax de “Shine…” – que por problemas no PA só a própria banda deve ter ouvido -, nada, nada. Tudo correu redondo, límpido, denso. E no que diz respeito aos músicos que o acompanharam (apoiados por três backing vocals de primeira, P. P. Arnold, Katie Kissoon e Linda Lewis), sua versatilidade permitiu que por vezes tivéssemos no palco guitarras e baixos dobrados, com Waters confortavelmente dividido entre o baixo de coração e o violão, a passear pelo palco com expressivo sorriso. A grande questão, obviamente, tinha por objeto os dois guitarristas: dariam conta do recado, trabalhando sobre os fantásticos e característicos solos de David Gilmour? Snowy White e Chester Kamen (aquele mais que este), emulando o guitarrista original do Floyd, foram corretos para com a excelência do cargo. Aliás, merece aplausos a inteligente preservação dos arranjos originais de todas as músicas. Como os sujeitos por aqui nunca haviam dado as caras, justo, muito justo.

Destaque ainda para uma boa tirada de Waters – na qual fica patente seu típico sarcasmo -, quando o grupo, ao longo de passagem solo de seu tecladista (Harry Waters, cria do líder), senta-se em redor de uma mesa no centro do palco, a jogar cartas displicentemente, como a dizer: “Sejamos honestos. Não temos nada a fazer agora. Portanto, vamos deixar isto claro e relaxar. Deixemos trabalhar o filho do chefe”.

Ufa!

A sensação, ao final de três horas de prazer e catarse, era de dever cumprido. Fui, vi e vivi tudo aquilo que (bem) quis. Já posso dormir (um pouco mais) tranqüilo, descrever a experiência em meus cadernos e dizer que o cara realmente existe. E está aí, honesto, na ativa. Nick Mason, Richard Wright e David Gilmour não mais precisam vir ao Brasil. O Pink Floyd já esteve aqui.

P. S. de 2023: Gilmour sempre será bem-vindo (e necessário) por aqui.

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