BETO

O que vai aqui é a tentativa um tanto quanto tacanha de contar uma história interessante – naquilo que a memória permite e a ficção arremata. O que é memória, o que é ficção, eu mesmo não sei. Mas importa? Venha a considerar o leitor o relato abaixo um conto, um perfil, mera invencionice ou o retrato aproximado de um passado distante, é para mim antes de tudo um tributo à honra, uma saudação à generosidade esquecida.

O texto por vezes é meio piegas, bem sei.

Paciência.

“Ah!, o Beto! Só você vendo!”

Quarenta anos atrás, estive em uma daquelas festinhas americanas. Não lembro o que levei. Mas, bebendo mal e rapidamente, desabei. No dia seguinte, memória zero e ressaca adolescente, perguntei como chegara em casa. Minha mãe então disse que um rapaz atencioso, educado e sinceramente preocupado comigo me trouxera, tocara a campainha e me passara às mãos de meu pai. Seu nome? “Beto”, e nenhuma outra informação havia.

À tarde, ao encontrar os amigos de rua, relatei brevemente o ocorrido. Antes que pudesse mencionar o nome de meu benfeitor, um deles disse: “Só pode ter sido o Beto”. Questionei então a razão do “só pode ter sido…”, e a resposta foi um “Cara, você vai conhecer o Beto e vai entender. Ele faz essas coisas. Ele faz um monte de coisas que ninguém faz.”

Vim a conhecê-lo alguns dias depois, ao voltar da escola. Era meio-dia e meia, sol a pino. Antes de conseguir abrir o portão de casa, um sujeito estacionou a bicicleta que pilotava e se dirigiu a mim, a voz doce e forte: “Não vim antes, já que seus amigos disseram que você estava bem. Tudo certo contigo?”

Respondi que sim, e recebi sua mão estendida: “Prazer, sou o Beto”. Agradeci a ajuda e o zelo, e  em curto tempo nos despedimos – para meu espanto – com o forte abraço para o qual fui puxado.

Com as semanas colhi pelo bairro, aqui e acolá, mais dados sobre este rapaz misterioso. “Beto fizera isso”; “Ah!, o Beto! Só você vendo!”; “O Beto não existe, Caio…”; “Sei lá, o Beto me parece meio maluco, bate bem não”. E frases assim ouvi por onde passei.

Fui vê-lo novamente dois meses depois (confesso que ansioso por isto), em uma celebração de nossa associação de moradores. Beto também morava ali, numa rua nos fundos do bairro, junto ao morro (era um sobrado). Ele sumira, isolado em algum recanto na Bahia. “Fui acampar uns dias”, disse com naturalidade. Com cinco minutos de conversa, soube que ele seria um amigo de toda a vida. “O Beto não existe, Caio…” – lembrei-me de imediato da frase.

Eu estava consumido pela curiosidade, fascinado pela leveza generosa que observava. Que novo amigo era aquele, que parecia mesmerizar a todos? Aos poucos, reuni histórias e histórias que me pareceram fantasiosas, até o momento em que eram confirmadas por dois, cinco, dez amigos comuns. Conto a seguir uma entre tantas, da qual me lembro com perfeição, pela narrativa sem rodeios de um amigo da época.

“Você sabia, Caio, que um ano atrás, quando jogávamos bola lá na frente de casa, um carro grande, acho que um Ford Landau, parou no meio da rua, e então saltou uma noiva com um buquê nas mãos? Ela foi até onde tava o Beto, beijou a testa dele e disse bem alto, deu pra todo mundo ouvir: ´Obrigado, obrigado demais! Nunca vou esquecer aquela conversa! Você é muito especial!´. E correu de volta pro carro, o casamento era duas ruas adiante. Depois a gente soube por uma amiga nossa que ela, a noiva, uns dois anos atrás se apaixonou pelo Beto, e quis de qualquer jeito que a primeira vez fosse com ele. A primeira vez, sacou?! Olha só! Era só um namorinho de nada. Um dia se separaram assim, bem de repente. Linda ela, não é? Esse Beto, que danado esse Beto!”

Outra amiga (que sabia bastante a respeito) confidenciara a alguém da turma que Beto, gentilmente, recusara a proposta, apontando o erro de uma escolha apressada; ela haveria de achar o momento correto – e o cara correto. Ela insistiu que ELE era esse cara, no que ouviu:

“Se for, por que a pressa? Vou continuar por aqui, e você vai voltar, e recomeçamos. Se não, um dia você vai entender tudo. Quem sabe não vem até me agradecer?”

Aquele caloroso obrigado, no meio da rua, passou a fazer sentido para todos os que o presenciamos

Beto era órfão de pai e mãe. Perdera os dois quando muito pequeno, eram poucas as memórias. Morava com os tios e os avós maternos. Mas jamais se abateu, ou ao menos demonstrou abatimento. Amava profundamente os parentes próximos. De sua tia, certa feita ouvimos: “Ele é o holofote de nossa casa. Beto carrega uma luz sem igual, e só quem conhece esse menino entende isso.”

Sim, bem sabíamos o que era aquilo, por ele tantas vezes iluminados.

Para ajudar em casa, já que a família vivia com algum conforto mas modestamente (salários apertados, altíssima inflação, coisas assim), Beto trabalhara como aprendiz na confeitaria de uma avenida próxima, e passara por uma oficina de bicicletas; entregara jornal nas redondezas, vendera verduras em feiras. E tantas outras coisas de que agora me esqueço. Nenhuma reclamação, nunca. Nunca uma expressão triste, jamais o desalento. Era o Beto, afinal.

Com tudo isto, ainda soubemos que Beto dedicava tempo aos velhinhos de um asilo próximo, para os quais lia livros que levava consigo (sabe-se lá como os arranjava). Vez ou outra escapava para um hospital e lá prestava algum serviço, qualquer serviço. Tudo nos chegava por alguém que esbarrara nele lá, acolá e ainda mais acolá. Beto nunca nos disse nada a respeito. Abominava exibicionismos morais, os falastrões vaidosos, as modéstias elaboradas, a menção a algo seu que pudéssemos considerar um feito. “Ora, se você acha bacana, vai lá e faz também. É fácil, dói nada, e você vai ver como os sorrisos dessas pessoas são bonitos”. Era feliz assim, e assim nos fazia mais felizes.

E era dele a melhor conversa entre os nossos, e não só entre os nossos. As senhorinhas, tardes inteiras em suas cadeiras nas varandas, eram loucas por ele. Não era raro vê-lo ao lado delas, sentado no chão, aos risos e brincadeiras. Beto não resistia a um ser humano.

E as mulheres o amavam, claro. No velho jargão, o melhor partido de nossas plagas, pois que sua situação econômica, ainda mal remediada, sabíamos todos que em pouco tempo dar-se-ia por vencida, subjugada por sua energia e inventividade.

Conhecíamos as histórias (nunca por sua boca) de seus mil e um namoros e paqueras. Beto refutava qualquer tentativa de conversa a respeito. As mulheres, ele as amava profundamente. Quando um de nós, boba e despretensiosamente, brincou de forma grosseira com uma mocinha que caminhava por nossa rua, Beto pediu que ela (então envergonhada e furiosa) se aproximasse. Ela chorava, no que ele disse ao autor da bobagem: “Não leve vergonha a uma mulher, o que você fez foi horrível. Peça desculpas, com gentileza, ou não se considere mais amigo meu.”

Não, não imaginem nenhuma imposição física de sua parte. Beto sequer era forte, ainda que musculoso. Não se sabe que alguma vez tenha levantado a voz ou ameaçado quem quer que fosse. Mas era daquelas pouquíssimas pessoas capazes de magnetizar o interlocutor em seu fino equilíbrio de doçura e firmeza. Lembro-me, lembro-me claramente de conhecido valentão de bairro próximo, que ao passar com seu carro alto pela rede de voleibol que esticáramos de um lado a outro da rua, arrancou-a propositalmente; insatisfeito, manobrou seu carro para nos dizer poucas e boas. Era sujeito um tanto mais velho, de todo conhecido pelas confusões que insistentemente provocava. Dizia-se, murmurava-se que já havia matado um desafeto, e tudo isto nos intimidava terrivelmente.

Então, o carro já estacionado e caminhando em nossa direção, foi por Beto (que tinha em mãos a rede arrancada) interceptado. Ele estava sentado no muro de minha casa, a se divertir com nosso jogo miserável. Ouvimos, assustados, a frase que dirigiu ao objeto de nosso temor:

“Eu gostaria que você fizesse o favor de chegar o carro um pouco mais pra frente. Quero falar contigo, é coisa rápida.”

Sabe-se lá por quais razões – pois já esperávamos o confronto, do qual, achávamos, Beto sairia irremediavelmente destroçado -, o sujeito obedeceu e ambos se afastaram.

Vinte metros adiante, uma conversa de aflitivos cinco minutos, encerrada com a partida silenciosa do valentão. Beto nos ajudou a remendar a rede, e nada mais foi dito. No dia seguinte, no mesmo horário e durante o mesmo voleibol, o brigão retorna. Estávamos sozinhos, Beto não estava ali. Qual não é nossa surpresa quando o sujeito sai do carro e, substituindo a quebra de nossos ossos por um grande sorriso, aproxima-se com uma rede novinha em folha! Ele nos a entregou e disse (não sou capaz de esquecer isto):

“É um presente meu pra vocês. E eu quero que vocês digam ao Beto que sou muito agradecido a ele”. Às vezes me pergunto se Beto não usava de hipnose, ou de algum poder mediúnico poderosíssimo, proibido aos bocós mortais que éramos.

“Ah!, o Beto! Só você vendo!”

Beto tinha apenas vinte anos de idade, veja você. Em um fim de tarde de sol fraco no bairro, um amigo correu em nossa direção e disse, aos gritos e soluçando: “Beto morreu! Beto morreu!”

Soubemos no mesmo dia: Beto, de bicicleta perto da orla – pois que adorava flanar pedalando -, abandonou o passeio e partiu na direção de um rapaz que estava a tentar levar, com violência, a bolsa de uma senhora, esta acompanhando a filha que deixaria em escola próxima. Ao se aproximar e tentar iniciar uma frase qualquer, recebeu no peito um único tiro (de onde surgiu a arma?!). Beto, que como tantos outros poderia dar de ombros, flutuando na indiferença urbana que marca esta cidade, morreu ali mesmo, o corpo estirado sobre a bicicleta. A bolsa não foi levada, e nunca soubemos qualquer coisa a respeito do autor do disparo. No jornal da manhã seguinte, algumas poucas linhas traziam seu nome completo, que nunca nos importamos em saber. Beto sempre foi o bastante.

Mesmo arrasados, pensamos em uníssono (tenho esta certeza): “Ah!, o Beto! Só você vendo!”

Seu velório parou o bairro. Sobre o caixão, uma coroa de flores com a palavra Amor. Seu tio, depois da tragédia, achara nas coisas do sobrinho o desenho de um caixão com a coroa assim retratada, o nome Beto minúsculo no centro de uma lápide escura. A data indicava uma semana antes.

Mesmo que violento seu adeus, este se deu como a vida que construiu para si mesmo: generosa, desprendida, aberta ao próximo. Aberta o bastante para receber no peito um balaço – mas que projétil pode enterrar o que é bom e justo?

“Ah!, o Beto! Só você vendo!”  

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