Quando a feiura reescreve a beleza

“Mas, e esta era a grande pergunta, como tinha sido escolhida, por que razão tinha sido escolhida?

Não havia resposta definida para tal indagação. Não apenas inexistia uma escala de esposas (e de concubinas), como também não se sabia o que levava o rei a escolher tal ou qual mulher. (…) Baseada nesse raciocínio, e depois de pensar muito, fiz uma lista de possíveis critérios de seleção:

a – atributos físicos: “Hoje quero uma morena não muito alta nem muito baixa, com seios grandes e quadris largos…”;

b – atributos psicológicos: “Gostaria de uma introvertida. Não deprimida: reservada, apenas. Daquelas que pensam muito e que guardam segredos em seus corações… “;

c – fatores políticos: “Minha aliança com aquele reizinho está fracassando. Me tragam a filha dele. Em homenagem ao pai, vou satisfazê-la…”;

d – preferências artísticas: “Tragam-me aqui aquela que canta muito bem…”;

e – visão regionalista: “Quero uma do Sul. Faz tempo que não passo por aquelas bandas…”;

f – seleção errática: “Entrem lá, tragam-me a primeira que encontrarem”.

Escusado dizer que não tinha com quem discutir tais critérios – muito menos com o rei.”

O trecho acima é um dos muitos deliciosos que compõem esta obra de Moacyr Scliar, A Mulher Que Escreveu a Bíblia, vencedor de seu terceiro Jabuti, em 2000. A partir da narração desta mulher notória por sua feiura, e que desejava com ardência ser possuída pelo rei dos judeus (e não o conseguia, apesar de numerosas tentativas), Scliar reconta numerosas passagens da Bíblia em seu Velho Testamento. 

Com o fracasso em copular com seu objeto de desejo, ela acaba por sublimá-lo como biógrafa de Salomão – no que reescreve sob sua ótica, que a aproximava sobremaneira do que observava, as histórias que muitos milhões se acostumaram a ler e ouvir ao longo dos séculos. E a feiura aqui é questão mui importante, visto que a partir dela todo o livro se estrutura. Diante de um monarca com tamanha fartura feminina – setecentas esposas, trezentas concubinas -, a narradora se vê impotente em seu projeto de seduzi-lo, recriando-se como escritora e criadora. Sobre sua feiura, diz a certa altura:

“Em pânico, minha irmã tentou fugir. Fui em seu encalço, derrubei-a. Lutamos. Pouco: não era adversária para mim; o que eu tinha de feia, tinha de forte… Dominei-a, arrebatei de sua mão o espelho. E pronto, agora ele era meu. 

Não era dos melhores espelhos, aquele: um simples disco de bronze polido, de qualidade duvidosa. Mas fazia o que todos os espelhos têm de fazer, para felicidade ou desgraça de quem neles se mira: mostrava um rosto. Meu rosto. 

Eu não podia acreditar no que estava vendo. Meu Deus, sou essa aí?”

Vê-se, por este trecho, como a beleza acaba por encaminhar o enredo do livro. E não qualquer beleza estava em questão, mas uma que devia de algum modo encontrar destaque entre as centenas de mulheres à disposição de Salomão. Sem ela – aliás, muito longe dela -, o que fazer? 

Assim, o romance prodigaliza estratégias e artimanhas para que esta feiura sucumba sob outros atributos que poderiam despertar o interesse masculino, e toda a prosa que então lemos neste tópico e em outros se alterna (com malícia) entre a dicção bíblica habitual e o baixo calão. Seria talvez um livro a chocar cristãos? Queremos crer que mesmo o leitor mais devoto, com a requerida abertura de espírito, pode lê-lo com generosidade, sem se escandalizar, ao observar que se trata de uma criação livre que, no fundo, traz em si uma nota de reverência e fascínio pelos textos sagrados.

Leitura recomendadíssima, é o que vos dizemos!

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