Era uma manhã 100% comum de um sábado, em 1983. Julho, talvez? Era inverno, certamente. Dia de banhar nossa cachorra, uma pastora belga reluzente, maravilhosa, avessa a banho como é próprio de quase todos os cachorros, mas dócil nesta hora, para ela, confusa. Estávamos, eu e ela, na lateral da casa, quando me armei dos ingredientes necessários. Ela se secaria ali mesmo, como desejasse, no calor possível de um sol invernal. Então, abri a água para que esta fluísse da mangueira.
Então, o susto: nada de a mangueira funcionar, e tudo corria perfeitamente. Havia água em todas as outras saídas que chequei. Nisto, percebi que um volume anormal ganhava corpo naquele tubo emborrachado. Curioso, observei que algo sairia por ali, e me posicionei para, inicialmente, molhar o chão. E… Michael Jackson!
Que água, o quê! MJ saía da mangueira e caía, meio que desajeitadamente, ao lado de nosso carro, quase batendo sua cabeça de cabelos ainda encaracolados na porta entreaberta do veículo (Um Passat Surf cinza, maravilhoso). Refeito do espanto inicial, perguntei-lhe em meu inglês do IBEUV – pouco mais que um indígena norte-americano teria usado com o colonizador branco, séculos antes – o que fazia ali, e o pouco que compreendi me dizia que aquilo era bastante comum. Michael vivia a se transportar, involuntariamente, pelo mundo, e dos modos mais imprevisíveis. Há poucas horas caíra sobre uma velhinha coreana que podava as flores de seu quintal, vindo de uma calha do telhado, e por milagre a pobre senhora não se machucara. Antes surgira do ralo de um banheiro em uma rodoviária infecta na Malásia, e um aborígene australiano o atingira com uma pequena flecha ao tentar alvejar um canguru que se escondia em uma moita. Era este o mundo nos primeiros anos da década de 80: Mr. Jackson estava em todos os lugares, em tempos sucessivos, e era inescapável.
Conto isto para tentar dimensionar aos mais jovens seu fenômeno, que encontra paralelo apenas nos Beatles. Por favor, não comparem o sucesso estrondoso de Michael Jackson com o de qualquer outro artista pop que o tenha sucedido, pois que tal coisa é patética. Se hoje, em algum canto do planeta, é preciso explicar a um camponês chinês quem é aquela cantora conhecidíssima ou aquele ator de cinema, nada precisava ser dito a respeito dele. Suas músicas, seu rosto e sua dança eram universalmente conhecidos e reconhecíveis de imediato, mesmo por monges trapistas.
Quer ver?
Disco mais vendido de todos os tempos? Thriller, de 1982, com algo (jamais saberemos) entre 70 e 100 milhões de cópias. Você pode imaginar um disco com estas dezenas de milhões de unidades circulando por aí, e com uma população mundial sensivelmente menor que a de hoje?
Clip musical mais antológico e mais decisivo da música pop? Thriller, com seus quase 14 minutos – que ocupou, bem me lembro, todo um bloco do dominical Fantástico, e num tempo em que o programa era absoluto.

Posso de dança mais imitado desde sempre? Moonwalk, sem qualquer dúvida. Vá ao YouTube e busque seu primeiro registro em um show. O frisson é tamanho que imediatamente percebemos que ali nascia um clássico.
E por aí vai.
E é bom dizer que Thriller sucedeu seu Off the Wall, de 1979, que já havia vendido estrondosos vinte milhões – quantidade que o álbum seguinte tornaria irrisória.
Não houve nem haverá artista puramente pop (já que os Beatles eram rock e pop) tão influente.
Michael Jackson em minha casa, saindo pela mangueira que eu usaria para banhar minha cachorra.
Taí uma (excelente, acho) história para ser contada repetidamente.“I am the one/Who will dance on the floor in the round?”