Vidas desgraçadas

É preciso recuperar um dos sentidos para a palavra desgraça: a perda das boas graças de que se desfruta junto a alguém (ou Alguém). Uma vida desgraçada é aquela cuja graça imediatamente possível está na recepção que recebemos do que é mal e indesejável, ainda que não percebamos isto. Aquela em que, enquanto sorrimos, estamos a nos afogar.

Em A Vida Mentirosa dos Adultos, mais uma adaptação em série para canais fechados de um livro de Elena Ferrante, observa-se a desgraça que insidiosamente penetrou por todos os poros na vida de cada um dos personagens que nos são apresentados, pois que tudo se funda no engano, na trapaça, na mentira, na ilusão. Sabe aquela velhíssima história da casa construída sobre terreno pouco firme, e que não resiste a uma enxurrada mais violenta? É por aí.

Há dois casais protagonistas e seus filhos, cada qual em certo estágio de putrefação moral – cercados por gente da mesma estirpe. Todos suficientemente podres para a fedentina se espalhar por metade da cidade de Nápoles, terreiro de suas desditas.

As andanças são narradas com a visão preferencial de Giovanna, adolescente que rapidamente percebe a fragilidade das relações falsas das quais é próxima, naquele típico arremedo burguês de esquerda: críticos ferinos de tudo quanto observam, enquanto (óbvio) desfrutam deste mesmo tudo quanto observam. Nada diferente do casal de amigos e filhas. Uns mais, outros menos, todos apresentam o conhecido descompasso entre discurso e ação. Mentira, chamemos.

As coisas começam a ruir, desgastadas que estão, com a colher enfiada fundo pela irmã do pai de Giovanna, pobretona e distante, de quem a garota (um tanto por tédio) se aproxima. Ela, a tia, que é meio maluquinha, desbocada, solta, sozinha, pra frente, rompida com o irmão, rancorosa. Um gesto firme seu e o teatro familiar corre água abaixo, na exposição de traições mútuas que descobre e, por meio da qual, acha vingança.

Chama a atenção certa sordidez em quase todos os momentos, expressa com maior ou menor delicadeza, mas sempre sordidez. Palavras sórdidas, comportamentos sórdidos, roupas e interiores de casas sórdidos, expectativas e ansiedades sórdidas. Se há beleza real na série, ela está em dois ou três personagens que circundam o núcleo principal. Mas é importante não confundir a delineação desse ambiente sórdido com a qualidade daquilo que vemos, pois que o seriado é bom, e tão somente diz o que deve ser dito em alternados níveis de explicitude. Se o ritmo por vezes parecer arrastado, não desanime: ele representa exatamente a preguiça espiritual das pessoas que passam diante de nossos olhos. Se há alguma redenção, ao fim, ela é misteriosa. E só a Graça verdadeira pode dá-la.

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