Boa noite, Corvos

O segundo semestre de 1995 não foi lá muito diferente do primeiro, com muita dissipação e hedonismo. Em março daquele ano botei tudo em caixas, acertei o envio de meu carro em um caminhão e, sem avisar a qualquer pessoa fora de meu círculo familiar mais íntimo, embarquei num avião para Fortaleza, onde seria recebido/hospedado por meu tio, irmão de minha mãe. Foi um exílio voluntário, necessário e, três meses depois, comprovadamente ineficaz. Nada resolveu.

O verão havia sido, digamos, bem agitado. Eu estava de férias de meu emprego como professor na rede estadual; algum dinheiro no bolso, apartamento à disposição na cidade então lotada pelos veranistas, todo o tempo do mundo. Ah, e um bar do coração, um pouco mais distante de minha casa e que servia de base para “tudo aquilo que gostaríamos de fazer”. É preciso dizer que fizemos? É claro que isso não poderia durar, por estafa ou risco. Foi quando abortei tudo e me mandei. Como destino, a cidade de Fortaleza.

No Nordeste, permanecia a rotina de inércia. Eu já havia morado lá duas vezes, meu carro chegara, e eu rodava e rodava e rodava. Depois das 18h, um grupo que jogava basquete numa quadra à beira-mar meio que me adotou como forasteiro simpático, e eu jogava duas ou três vezes por semana. Era minha atividade saudável. A única.

Pouco tempo depois, um pouco mais limpo e entediado, retornei a Guarapari como havia de lá partido: de repente. No que em pouco tempo retomei a postura de antes.

Certo dia correu entre os nossos a notícia de uma festa; seria em casa de um sujeito que viera de Brasília e inaugurara famosa casa noturna. Estávamos todo convidados, ou quase todos, e isto pouco importava: iríamos todos, de uma maneira ou outra. Era um bonito lugar, beirando o canal, espaço amplo. O ingresso era o equivalente a dez cervejas. Um valor razoável, dentro de nossas possiblidades. Fomos.

Casa cheia. Música alta. Grande agitação. Até que uma voz disse sinistramente: a bebida acabou.

Como?! Acabou?! Como assim, acabou?!

Havia algo de errado naquilo. Por mais que fossemos rápidos, era ainda cedo para que tanta bebida acabasse. Estava claro que uma fraude estava em andamento. Talvez motivado pelo que via, o dono estivesse tentando nos fazer sair mais cedo, desistir. Protestos. Gritos. Certa bagunça. Ameaças, a casa vasculhada. Nada de cerveja. Nenhum sinal.

Quando ficou claro que não acharíamos nada, e que teríamos que continuar a noite em outro lugar, começamos aos poucos a dispersão. A história jamais mudava. Esta festa, como tantas outras, apenas alongava o lamentável estado das coisas.

Mas alguns meses antes eu me informara de uma banda formada em 1990, e que estava então em seu terceiro disco. Um clip rodava sem parar na MTV, as revistas e jornais que eu lia faziam a ela referência constante. Em meio ao caos de minha vida, alguma coisa boa então surgia. E naquela noite, entre os desencontros de sempre, eu havia recebido o presente de seu primeiro álbum. Inesperadamente, ia eu embora daquela casa e me despedia dos meus com um CD com o qual não contava. Eu finalmente poderia ouvi-los por inteiro.

Em casa, pouco depois – ou no dia seguinte, não lembro –, coloquei o disquinho para rodar. E… BUM! Ora, ora, ora, o que é isto aqui?! Tudo aquilo que minha expectativa prometia estava então maravilhosamente entregue. Ali estava uma banda nos cascos, revirando o baú dos anos 70 e se lambuzando, lambuzando-nos.

Esse disco, pelo resto de 1995 e por muito tempo, foi trilha sonora de meus risos e desgostos. No ano seguinte, em janeiro, eles tocariam pela primeira vez no Brasil, Rio de Janeiro, Praça da Apoteose. Estupidamente, estupefacientemente, não fui. Ah, eles voltam logo, pensei.

Bem, só voltam agora, 14 de março de 2023, para um único show em São Paulo. Estarei lá.

Tenho o cd ainda hoje. E, há pouco, comprei o belíssimo vinil. Evidentemente, muitíssimo daquele Caio ficou para trás, e que bom que ficou. Com ele, um bocado de coisas feias, desagradáveis, constrangedoras. Fica este disco como o marco de um cara que conheci de muito perto décadas atrás, e do qual não tenho saudades, mas compaixão.

Eu.

P. S: quero dizer que, claro, havia coisas boas naquela época. Muitas gargalhadas genuínas, naturais. Um gostar autêntico. E gestos nobres, por que não? O inferno estava na inconstância, no movimento incessante, na necessidade de estar sempre num pico artificial de satisfação. Era isto, deste modo.

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