A terra devastada da adolescência

Como era costume entre os de minha geração, e falo daqueles que entendiam a música como mais que pano de fundo para suas vidas (entendíamos a música como protagonista do que vivíamos), ouvir algum som nas rádios, nas festas ou na televisão não bastava: precisávamos ter os discos ou as fitas em nossas casas. Lembro do primeiro disco que ganhei como um pedido direto aos meus pais – um vinil duplo do Elvis, com seus 40 maiores sucessos, no ano de sua morte (1977).

A partir daí, os discos passaram a lugar de honra em meus desejos de presente. Modo geral, eu recebia o dinheiro e os comprava, e quando passei a receber uma mesada (ou semanada), tentava poupar o bastante para conseguir, quem sabe, um disquinho por mês. Da tola perspectiva de então, jamais fui tão estupidamente feliz. 

Mas, claro, não ter o dinheiro não era impedimento para que eu estivesse nas lojas o tempo todo, fuçando, ouvindo, entrando em estado de maravilhamento com as artes das capas e contracapas. E tínhamos como arma consideravelmente mais em conta as fitas cassete, o primeiro instrumento de compartilhamento em massa de discos inteiros. Não tens o vinil, jovem mancebo? Traga vossa fitinha ao castelo e providenciarei uma gravação de primeira.

Éramos felizes na penúria, por vezes aguardando aquela canção no dial, os dedos nas teclas, ávidos que estávamos para registrar uma música que não poderíamos de outro modo ter à disposição. A escassez da oferta produzindo o delirium tremens da demanda. Seríamos quem hoje somos, nós/aqueles, se tudo não corresse naquela velocidade, naquele tempo, acordado naquelas condições? Esta é a poderosa comoção de um amor reprimido.

Sinto ainda nos dedos as páginas de revistas e jornais que informavam os ingênuos nativos das ondas sonoras norte-americanas e europeias, e acreditávamos em tudo – porque era belo e bom acreditar em tudo. ´Você leu? Fulano de tal, vocalista da banda Beltrano de tal, almoça todos os dias dois anões e quatro chimpanzés, e antes de dormir vagueia pelas florestas como um lobo. É verdade!, eu li na “Guardiões Metálicos” do ano passado. Tem até umas fotos meio borradas, mas dá pra ver!` 

E nós víamos, ora, como não?! Eram nossos heróis, e não seria absurdo que comessem dois anões e quatro chimpanzés e andassem lupinianamente pelo mato. Eles podiam tudo, aos nossos olhos secos e crédulos. Se havia um bicho, este éramos todos nós, perdidos num sentimento que nos dizia que sim, aqueles que carregávamos em camisas e pôsteres eram capazes de qualquer coisa.

E é com alegria que digo que entrar na casa dos vinte anos não me arrancou a ingenuidade dos primeiros anos de ouvinte; eu a carreguei comigo por bastante tempo, e nem mesmo o cinismo e tudo aquilo que de sombrio ele carrega conseguiu trazer sua acidez e extrair do que sou a necessária devastação adolescente, sem a qual somos apenas… consumidores, incapazes de dar à música algo além do lugar de paisagem sonora para nossas mediocridades. Que a passagem dos anos nunca me permita ouvir um disco pelo qual um dia me apaixonei com desinteresse, desdém ou quaisquer adultices degeneradas.

Em dado momento, pelo meio dos anos 90, agi com a estupidez de outros milhões de estúpidos, e iniciei a desabalada corrida da troca de vinis por cd´s. Corrijo: não houve corrida alguma. Em não mais que uma semana, distribuí entre amigos e não tão amigos quase toda a coleção. Distribuição, não venda, e eu o fiz com carinho, guardando para mim algumas poucas dezenas (que ainda estão comigo). Soube pouco depois que a grande maioria de meus presentes foi abandonada, tristemente largados foram pois meus filhotes. Que o grande cemitério dos bons sons os tenham. Enfim, depois de tantas mudanças de endereço (quinze, vinte?), consegui recompor parte do que tinha, e adquirir outros discos. Uns, bem-educados; outros, gente meio suja e descabelada, pouco amistosa. Mas eu os recebo aqui em casa, todos eles, com generosidade. Pois que muitos, em épocas pouco solares de minha vida, estiveram comigo, ombro a ombro, e em muitas destas vezes não havia mais ninguém.

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