Sempre fui um amoroso leitor de quadrinhos. Alfabetizado, eles dividiam espaço com a enciclopédia Conhecer que ornava a biblioteca de nossa casa. Meu pai, semanalmente, chegava do trabalho com uma dezena de revistinhas da DC Comics e da Marvel (anos 70, quando o cinema ainda não havia estragado tudo com adaptações habitualmente burras). Também passei a leitor da niilista revista Mad, de um humor cáustico e adulto que eu entendia mui parcialmente, mas que me fez começar a olhar o mundo com pouca seriedade. Adolescente, pegava um ônibus até o centro da cidade para zanzar entre bancas de jornal, ávido por edições usadas das revistinhas de que mais gostava. Tive uma coleção considerável, até que uma infiltração depois de forte chuva inundou o sótão onde o tesouro repousava e… perdi tudo. Também eram de leitura obrigatória as tiras diárias dos grandes jornais, que por muitos anos assinamos religiosamente.
Por isto, tenho dificuldade em entender a repulsa em bloco pelo formato literário das HQ´s. Quando ouço a frase “não gosto de quadrinhos”, tento imaginar como uma arte é integralmente deixada de lado. Um artista deveria ser julgado pelo que deixa, tão mais que pelo modo por meio do qual se apresenta.

Todo este preâmbulo eu o usei para falar da cartunista norte-americana Alison Bechdel, lançada recentemente por aqui. Dela li “Fun Home” (2006), e digo que gostei bastante. São memórias duras e compassivas, cortantes e piedosas, em cuja principal mira está seu pai. Um homem fascinante: taciturno, metódico, culto, por vezes amoroso e costumeiramente crítico, obcecado pela nova casa da família, que reforma sem cessar com as próprias e habilidosas mãos, projeto este em que envolve inapelavelmente toda a família. Alison, a mais velha dos filhos, observa meio mesmerizada aquele sujeito perambulando entre os aposentos, dividindo-se ele entre a leitura, a funerária (o negócio familiar que funciona ali mesmo, em parte isolada) e a manufatura de objetos que devem embelezar o casarão. Importa dizer que o pai possui refinado senso estético, e de suas intervenções nasce um bonito lar, distinto e bem-cuidado – e que, ao mesmo tempo, não pode ser maculado de modo algum, o que gera uma fina tensão a acompanhar os movimentos de seus moradores, permanentemente sob os olhos obsessivos de uma vigília implacável.
Outra relevante marca da HQ são as muitíssimas referências ao teatro, à literatura, à psicanálise, ao cinema e a tudo aquilo que faz com que o mundo em que vivem (décadas de 50, 60 e 70) gire e entre em combustão. É um livro que, se não exige que o leitor seja íntimo de certa cultura, faz com que este, de posse dela, possa desfrutar melhor o que lê.
Também deve ser notada a sexualidade de pai e filha, ambos gays; ela, descobrindo-se entre a adolescência e a vida adulta, e ele desde sempre vivendo uma vida dupla que ela, ainda garota, acompanha com susto e interesse. Bechdel é, há tempos, escritora feminista militante, mas que tal militância não indique a quem não a conhece uma literatura de proselitismo. Ela escreve para todos, e escreve bem. Se há engajamento, ele é sutil, sem em qualquer momento se sobrepor àquilo que busca contar. E se é marca de todo prosélita tornar sua obra não mais que um panfleto, aqui isto não acontece. Sua militância parece dar-se em outros campos de atuação, o que abre seus livros a um vasto público.
Mas Sizue, que há pouco alistou os quadrinhos entre suas aquisições – e que bom que os tenha descoberto -, não só me apresentou à autora como leu ainda outro livro seu lançado aqui, publicado com um intervalo de seis anos. “Você é minha mãe”, do qual li somente o primeiro capítulo e cujas (maiores) informações extraí da leitura feita por ela, muda seu foco de atenção para a mãe, personagem propositalmente secundária no livro anterior. Atriz de teatro de textos dramaturgicamente relevantes, e professora de colegial, casou-se cedo e cedo percebeu que seu marido habitava certo mundo de mutismo e introspecção, intercalado por rompantes de fúria verbal, e que sua trajetória (a dela) deveria levá-la, em contraponto natural, a destino oposto.
Faço breve intervalo para dizer que a morte do pai, relatada em “Fun Home”, carrega aos olhos da filha certo mistério. Atropelado por um caminhão enquanto atravessava rodovia próxima carregando um fardo de madeira, este desfecho de sua vida talvez indicasse mais que uma distração fatal. O pai se deixara atingir, em um epílogo brusco? É este fim, associado ao que dele observara no cotidiano, que a leva a narrar sua história.
Enquanto o primeiro livro, em preto & branco, traz pontuais intervenções em um azul discreto, este segundo o faz com o vermelho, numa solução visual que parece destacar certos pontos dramáticos do texto. Os quadrinhos são uma expressão que costumeiramente exige a captura quase que simultânea da conjunção entre a arte do desenho e as palavras, e tudo aqui funciona muito bem. O resultado final é pura delícia estético-intelectual.
Outra marca de “Você é minha mãe?” está no mote de cada um de seus sete capítulos: todos têm início em um sonho da protagonista, e atuam como um alicerce para considerações psicanalíticas a respeito de posturas, sentimentos e decisões por ela adotados ao longo da vida. Como em “Fun Home”, uma teia de referências mais ou menos eruditas em diversos campos da cultura permeia o enredo.
No que recomendo sua leitura, certamente uma atividade a ser feita com calma e algumas pausas, e que tende a levar o leitor a buscar em seu próprio percurso elementos que possa associar a sua biografia. Enfim… quadrinhos, por que não?