Não é preciso muito para perceber certa fragilidade em Kafka, e não falo de seus textos: suas não muitas fotos deixam claro um homem franzino, de olhar receoso e pouco seguro. Seu pai era o contraponto adequado: forte, imponente, cheio de si. No que o (grande) escritor tentou expurgar os miasmas dessa relação desigual em muitos de seus livros.
“Carta ao Pai”, logo de cara, explicita o medo que a imponente figura paterna provoca no filho:
“Querido Pai:
Você me perguntou recentemente por que eu afirmo ter medo de você. Como de costume, não soube responder, em parte justamente por causa do medo que tenho de você, em parte porque na motivação desse medo intervêm tantos pormenores, que mal poderia reuni-los numa fala.”
A carta, escrita cinco anos antes da morte de Kafka (então com 36 anos), em 1919 – e cujo envio foi diligentemente impedido por mãe e irmã -, jamais seria lida pelo pai. Um pai que nunca haveria de reconhecer a legitimidade da carreira do escritor. E vale dizer que este, pouco publicado em vida, não foi exatamente um sucesso crítico e popular enquanto respirava. Seus familiares pereceriam no Holocausto da Segunda Guerra, e são estas ausências que acabam por facilitar a publicação integral do texto em 1950, antes publicado parcialmente por Max Brody. É necessário dizer que o magrelo e curvado tcheco jamais pensou em tal coisa?

Kafka, em seus diários, não titubeou em afirmar que muito daquilo que colocou nos livros era mera – e literariamente excepcional – extensão dos conflitos domésticos que carregava no coração e na cachola. O indivíduo meio anônimo, banal, sufocado por acontecimentos imensamente maiores que sequer entende, e que se vê em suas histórias, projeta o corpanzil do senhor Hermann achatando a individualidade do escritor. Mr. Hermann, o gentil homem que, certa noite, negou ao filho um copo d´água e o trancou fora de casa, sob o frio do inverno. A missiva, tanto quanto os enredos fantásticos que conhecemos, parecem tratar de um perdão mútuo entre duas gerações de homens que mal se davam.
Quem sabe Kafka não poderia (não fosse ele judeu, e é conhecido o proverbial calor das relações nas famílias judaicas), e aqui parafraseio *famosa citação sua, resumir a carta imensa como vai abaixo:
“02 de novembro, 1919: meu pai continua sua guerra contra mim. À tarde, natação.”
*“02 de agosto, 1914: A Alemanha declarou guerra à Rússia. Natação à tarde” (Diários, Kafka).